Boletín de la Asociación Internacional de Derecho Cooperativo

International Association of Cooperative Law Journal

ISSN: 1134-993X • ISSN-e: 2386-4893

DOI: http://dx.doi.org/10.18543/baidc

No. 59/2021

DOI: http://dx.doi.org/10.18543/baidc-59-2021

ARTÍCULOS

Os grupos económicos cooperativos na encruzilhada entre os princípios da intercooperação e da autonomia e da independência. Uma análise à luz do direito português

Cooperative economic groups at the crossroads between the principles of cooperation among cooperatives and autonomy and independence. An analysis under the Portuguese Law

Deolinda Meira[1] 

Instituto Politécnico do Porto/ISCAP/CEOS:PP (Portugal)

doi: http://dx.doi.org/10.18543/baidc-59-2021pp149-181

Recibido: 10.06.2021
Aceptado: 01.10.2021

Sumário: 1. Introdução. 2. Razões da constituição dos grupos cooperativos. 2.1 Limitações na transmissão da posição de cooperador.2.2. Limitações quanto aos membros investidores. 2.3. Dificuldades de concentração de capital 2.4. A irrepartibilidade das reservas 2.5. Limites quanto às operações com terceiros. 3. os grupos cooperativos como uma manifestação da intercooperação e integração cooperativas. 4. O grupo cooperativo como um expediente técnico-jurídico da associação de cooperativas com outras pessoas coletivas. 4.1. As modalidades de associação. 4.2. Requisitos. 4.3. As cooperativas podem constituir sociedades. 4.4. A cooperativa pode criar, sozinha, uma sociedade comercial. 4.5. A questão dos grupos cooperativos. 5. Os grupos económicos cooperativos e os riscos de desmutualização. 6. A essencialidade de um regime de determinação e distribuição de resultados que assegure a identidade cooperativa. 7. Conclusões. 8. Bibliografia

Summary: 1. Introduction. 2 Reasons for the establishment of cooperative groups. 2.1 Limitations on the transfer of the position of the cooperator. 2.2 Limitations as regards investor members. 2.3. Difficulties in the concentration of capital 2.4. Indivisibility of reserves. 2.5. Limitations on the operations with third parties. 3. The cooperative groups as a manifestation of the cooperative principle of cooperation among cooperatives. 4. The cooperative group as a technical legal expedient for the association of cooperatives with other legal persons. 4.1. Types of association. 4.2. The requirements. 4.3. The cooperatives may constitute companies. 4.4. The cooperative may set up a commercial company on its own. 4.5. The issue of cooperative groups. 5. Cooperative economic groups and the risks of demutualisation. 6.The essentiality of a regime for the determination and distribution of results which ensures the cooperative identity. 7. Conclusions. 8. Bibliography

Resumo: O regime jurídico que enquadra as estratégias de grupo adotadas pelas cooperativas em Portugal é insuficiente. As estratégias de grupo são uma manifestação do princípio cooperativo da intercooperação, na sua dimensão de colaboração económica, pelo que o Código Cooperativo permite às cooperativas constituir sociedades comerciais, filiais societárias, adquirir participações no capital social de sociedades comerciais. No entanto, estão vedadas à cooperativa as relações de grupo que se traduzam em qualquer forma de «subordinação» da cooperativa aos interesses de outras entidades. De facto, o princípio cooperativo de autonomia e independência impede a cooperativa de ser uma entidade controlada num grupo dominado por outra entidade jurídica. Se a cooperativa adota esta estratégia de grupo para a satisfação das necessidades dos seus membros, estaremos perante o conceito de «mutualidade indireta», conceito admitido expressamente na doutrina e na legislação de certos ordenamentos jurídicos. Impõe-se uma análise casuística que permita distinguir as situações de mutualidade indireta das situações de desmutualização do fenómeno cooperativo. A salvaguarda da identidade cooperativa exige um adequado regime de determinação e distribuição dos resultados gerados no contexto dos grupos cooperativos.

Palavras-Chave: Grupo cooperativo, intercooperação, sociedade comercial, mutualidade indireta, desmutualização.

Abstract: The legal framework for group strategies adopted by cooperatives in Portugal is insufficient. Group strategies are a manifestation of the cooperative principle of cooperation among cooperatives in its economic collaboration dimension. Therefore, the Cooperative Code allows cooperatives to set up commercial companies, corporate subsidiaries and acquire shares in commercial companies’ capital. However, cooperatives are prohibited from forming group relations, resulting in any form of «subordination» of the cooperative to the interests of other entities. The cooperative principle of autonomy and independence prevents the cooperative from being a controlled entity in a group dominated by another legal entity. Suppose the cooperative adopts this group strategy to meet the needs of its members. In that case, we are faced with the concept of «indirect mutuality,» a concept expressly admitted in the doctrine and legislation of certain legal systems. A case-by-case analysis is required to distinguish situations of indirect mutuality from those involving the demutualisation of the cooperative phenomenon. Safeguarding the cooperative identity requires an appropriate system for determining and distributing the results generated in the context of cooperative groups.

Keywords: Cooperative group, cooperation among cooperatives, commercial company, indirect mutuality, demutualisation.

1. Introdução

Em Portugal, impõe-se um tratamento jurídico do fenómeno dos grupos cooperativos dada a relevância crescente que o mesmo tem vindo a adquirir nos últimos tempos.

Efetivamente, as cooperativas portuguesas têm vindo a adotar estratégias de grupo, mediante a constituição de sociedades comerciais, de sociedades gestoras de participações sociais (SGPS), de filiais societárias, de participações no capital social de sociedades comerciais nacionais ou não nacionais.

Tendo em conta os dados da terceira edição da Conta Satélite para a Economia Social (CSES)[2], para o total de cooperativas consideradas (2343 cooperativas),foram identificadas 56 sociedades comerciais (incluindo sociedades gestoras de participações sociais) cujo capital é integralmente detido por cooperativas [3], existindo informação económico-financeira disponível para 52 unidades.

Estas entidades societárias concentravam a sua atividade nas indústrias transformadoras (25%), nas atividades de consultoria, científicas, técnicas e afins (21,2%) e no comércio por grosso e a retalho (19,2%). Cerca de 65% das sociedades participadas em 100% por capitais cooperativos desenvolviam a respetiva atividade económica nestas três áreas.

A relevância económica destas sociedades comerciais participadas por cooperativas é evidente. De facto, em 2016, este fenómeno gerou aproximadamente 106,2 milhões de euros de VAB, apresentando as indústrias transformadoras o contributo mais elevado para este resultado (87,8%). Acresce que as sociedades comerciais participadas em 100% pelas cooperativas foram também responsáveis pelo pagamento de 50,3 milhões de euros, concentrando-se 77,3% deste montante nas indústrias transformadoras e 8,3% no comércio por grosso e a retalho.

Tal como é destacado na CSES, esta realidade torna mais complexa a análise da dimensão económica das cooperativas. Efetivamente, se fosse considerado o contributo destas sociedades comerciais, o VAB do setor cooperativo ascenderia a 710,5 milhões de euros, em 2016, reforçando a posição das cooperativas como o segundo grupo de entidades mais relevante da Economia Social.

Estes dados são ilustrativos da importância que os grupos cooperativos têm vindo a ganhar nos tempos que correm. Não obstante esta relevância prática, o Código Cooperativo português[4] não consagra um regime próprio para esta matéria dos grupos cooperativos.

Nas linhas que se seguem pretendemos refletir sobre o regime jurídico dos grupos económicos cooperativos em Portugal, dando particular relevo às seguintes questões: (i) Quais as razões da constituição dos grupos cooperativos?; (ii) Poderemos ancorar este fenómeno dos grupos cooperativos no princípio da intercooperação?; (iii) Os grupos económicos cooperativos posicionam-se adequadamente perante o princípio da autonomia e da independência?; (iv) Qual o regime jurídico dos grupos cooperativos?; (v) São suficientes as soluções existentes no ordenamento jurídico português?

2. Razões da constituição dos grupos cooperativos

Segundo a doutrina, os grupos apresentam vantagens económicas, financeiras e até jurídicas (Antunes 2002, 66 ss.; Morillas Jarillo 2018, 379-380).

A necessidade de aumentar a produtividade bem como a capacidade de comercialização e distribuição, a redução dos custos de produção, a necessidade de sobreviver no mercado e de concorrer com os grandes grupos económicos, a possibilidade de atuar em áreas geográficas diversificadas, internacionalizando a atividade, são alguns dos motivos apontados para a constituição dos grupos económicos cooperativos. A globalização da economia, o surgimento de grandes grupos económicos internacionais e a própria saturação do mercado, têm obrigado as cooperativas a aumentar o seu tamanho de modo a serem mais competitivas. Acresce que muitas empresas cooperativas são de pequena e média dimensão e, muitas vezes, para sobreviverem no mercado competitivo que as rodeia, têm de se envolver em processos de integração e cooperação[5].

A doutrina tem apontado, igualmente, algumas limitações legais do modelo cooperativo que impedem o crescimento e as possibilidades de expansão e penetração das cooperativas em novos mercados, bem como a obtenção de recurso externos: limites na transmissão da posição de cooperador, limites quanto aos membros investidores, dificuldades de concentração de capital e de atração do investimento externo, obrigação de dotação de reservas obrigatórias e irrepartíveis, limites quanto às operações com terceiros, entre outros (Vargas Vasserot 2010, 161). As cooperativas tentam contornar estas limitações mediante o recurso a processos de integração e cooperação, entre os quais a constituição de grupos cooperativos. Tais limitações agravariam as dificuldades de as cooperativas conseguirem, só por si, garantirem os meios financeiros suficientes.

Centremo-nos brevemente na análise dessas limitações no contexto do direito português.

2.1. Limitações na transmissão da posição de cooperador

O regime jurídico da transmissão da posição de cooperador sofre muitas limitações.

O capital social das cooperativas é representado por títulos de capital (art. 82.º do CCoop).

O art. 86.º do CCoop trata do regime jurídico da transmissão dos títulos de capital, dispondo que os títulos de capital só serão transmissíveis mediante autorização do órgão de administração ou, se os estatutos da cooperativa o impuserem, da assembleia geral, sob condição de o adquirente ou o sucessor já serem cooperadores ou, reunindo as condições exigidas, solicitarem a sua admissão.

A titularidade dos títulos de capital não é, assim, uma posição separável da qualidade de cooperador. Tal explica que a limitação da livre transmissão dos títulos de capital seja a regra geral e não a exceção, impedindo-se a livre transmissibilidade dos títulos de capital a pessoas alheias à cooperativa (Meira 2009, 191).

O cooperador que pretenda transmitir os seus títulos de capital deverá comunicá-lo, por escrito, ao órgão de administração, devendo a recusa ou concessão de autorização ser comunicada ao cooperador no prazo máximo de 60 dias a contar do pedido, sob pena de essa transmissão se tornar válida e eficaz, desde que o transmissário já seja cooperador ou reúna as condições de admissão exigidas (art. 86.º, n.º2 do CCoop). Na jurisprudência, destaca-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10 de janeiro de 2011, no qual o Tribunal considerou que a transmissão dos títulos de capital depende sempre da prévia decisão dos órgãos da cooperativa e que a atribuição dos títulos de capital só tem sentido como condição de aquisição da qualidade de cooperador, não podendo consumar-se nunca sem ligação a essa qualidade (Meira 2012a , 549-555).

Assegura-se, deste modo, certeza e segurança jurídica em matéria de procedimentos.

Quanto ao modus operandi de transmissão, o legislador distingue entre a transmissão inter vivos e a transmissão mortis causa, e, dentro das transmissões, entre os títulos de capital titulados e os escriturais.

Assim, nos n.os 3 e 4 do art. 86.º, consagra-se que a transmissão inter vivos dos títulos de capital se opera: a) no caso dos titulados, através do endosso do título, assinado pelos transmitente e adquirente, e por quem obriga a cooperativa, sendo averbada no livro de registos respetivo; b) no caso dos escriturais, através do registo na conta do adquirente, sendo averbada no livro de registos respetivo.

Quanto à transmissão mortis causa dos títulos de capital, dispôs-se que a mesma se opera através da apresentação de documento comprovativo da qualidade de herdeiro ou legatário, mediante o qual será averbado em seu nome: a) no caso dos titulados, no respetivo livro de registo, devendo o título ser assinado por quem obriga a cooperativa e pelo herdeiro ou legatário; b) no caso dos escriturais, na conta do adquirente, sendo averbados no livro de registo respetivo.

Não sendo admissível a transmissão mortis causa, o herdeiro ou legatário terá direito ao reembolso dos títulos de capital (art. 86.º, 5, do CCoop).

O Código Cooperativo proíbe expressamente, no n.º 6 do art. 86.º, que os credores particulares do cooperador possam penhorar, para satisfação dos seus créditos, os títulos de capital de que o cooperador seja titular. Deste modo, a lei privilegia o caráter estritamente pessoal da participação do cooperador na cooperativa e a consequente necessidade de evitar que, da mesma e em virtude de uma ação executiva, possam vir a fazer parte sujeitos privados dos requisitos requeridos, pela lei ou pelos estatutos, para serem membros da cooperativa. Além disso, visar-se-á evitar que a cooperativa seja colocada em dificuldades económicas por ação dos credores particulares dos cooperadores, o que poderia acontecer se os referidos credores tivessem o direito de exigir à cooperativa a liquidação da participação do cooperador devedor e o pagamento imediato da respetiva importância (Meira 2018, 476-479).

2.2. Limitações quanto aos membros investidores

Os membros investidores, introduzidos na reforma da legislação cooperativa de 2015, correspondem a uma via de financiamento das cooperativas através de capital trazido por terceiros. Efetivamente, os membros investidores são pessoas singulares ou coletivas (incluindo sociedades comerciais) que não participam na atividade da cooperativa, tendo nesta apenas um interesse financeiro pelo investimento que nela realizam. Cumprem, por isso, uma função estritamente financeira.

Portugal não é pioneiro em matéria de admissão de membros investidores em cooperativas. Desde os anos 90 do século passado que se foi generalizando o financiamento da cooperativa através de contribuições financeiras trazidas pelos membros investidores. Surgem, assim, em França, Itália e Espanha figuras como l’associé non coopérateur, el asociado, el socio colaborador o il socio sovventore (Fajardo 2018, 122-128).

A presença de membros investidores na cooperativa, de modo diverso da dos membros cooperadores, não é necessária, mas sim facultativa, tal como o referem o art. 5.º, n.º 4 e o art. 20.º, n.º 1, do CCoop. Só se os membros cooperadores o quiserem e o previr os estatutos é que poderão existir membros investidores numa cooperativa.

Não há, por isso, qualquer imposição legal de que as cooperativas aceitem membros investidores. Não funciona para esta categoria de sujeitos o princípio da adesão voluntária e livre. Por outro lado, ao contrário do que acontece com o voto plural, o Código Cooperativo não apresenta qualquer restrição de membros investidores em razão do ramo cooperativo. Em abstrato, cooperativas integradas em qualquer ramo cooperativo podem estatutariamente admitir membros investidores.

A admissão de membros investidores resulta sempre de uma decisão dos cooperadores. Assim, no momento da constituição da cooperativa, os estatutos deverão necessariamente fixar as «condições e limites da existência de membros investidores quando os houver» (al. f) do n.º 1 do art. 16.º do CCoop). Na mesma linha, no n.º 1 do art. 20.º determina-se que «os estatutos podem prever a admissão de membros investidores».

Tal significa que, se os estatutos nada disserem sobre a admissão de membros investidores, não poderá a assembleia geral deliberar no sentido de os admitir. Se os estatutos fundadores/originais não o tiverem previsto e se se quiser incorporar esta categoria de membros, dever-se-á proceder à alteração dos estatutos de modo a prever a sua existência e demais elementos exigidos. Esta alteração dos estatutos exige uma maioria qualificada de dois terços dos votos expressos (art. 40.º, n.º 2, do CCoop).

Sendo que os membros investidores só são admitidos desde que essa admissão esteja prevista nos estatutos da cooperativa, poderá questionar-se se essa admissão pode ser feita na própria assembleia de fundadores ou apenas posteriormente. O n.º 3 do art. 20.º parece apontar para a segunda hipótese, ao referir que: «A admissão de membros investidores tem de ser aprovada em assembleia geral, e deve ser antecedida de proposta do órgão de administração». No entanto, o art. 13.º, al. i), do CCoop exige que, na ata de fundação, se identifiquem os membros investidores quando os houver, pelo que entendemos que a admissão pode ser feita na própria assembleia de fundadores, depois de aprovados os estatutos que preveem a possibilidade dessa admissão.

Se os membros investidores não participaram no ato de constituição da cooperativa, terão que solicitar a sua admissão ao órgão de administração. No entanto, esta admissão não dependerá apenas da decisão deste órgão, como acontece no caso dos membros cooperadores (art. 19.º CCoop), mas deverá ser aprovada em assembleia geral, mediante uma proposta previamente apresentada pelo órgão de administração.

A proposta de admissão, realizada pelo órgão de administração, deverá pronunciar-se sobre vários aspetos, tal como resulta do n.º 4 do art. 20.º: o capital mínimo a subscrever pelos membros investidores e as condições da sua realização; o número de votos a atribuir a cada membro investidor e os critérios para a sua atribuição, a eventual existência de restrições quanto à participação nos órgãos sociais, os demais direitos e deveres que lhes correspondam; a data de cessação da qualidade de membro, se for caso disso, e as condições da mesma. Esta proposta será submetida à apreciação da assembleia geral, a qual poderá aprová-la por maioria ordinária, salvo previsão em contrário dos estatutos (art. 40.º do CCoop).

A admissão de membros investidores está, deste modo, condicionada à sua aprovação pelos órgãos sociais. A esta condição acresce a obrigação da realização de uma entrada de capital. Esta concretiza-se mediante a subscrição de títulos de capital, ainda que o legislador, no n.º 2 do art. 20.º do CCoop, pareça admitir a alternativa de esta obrigação se concretizar mediante a subscrição de títulos de investimento. Entendemos, todavia, que esta alternativa não é admissível, dado que somente são convertíveis em títulos de capital os títulos de investimento na titularidade de membros cooperadores ou que reúnam condições para o ser, tal como estabelece o art. 91.º, n.º 2, al. d), do CCoop. 

Em nome da preservação do princípio cooperativo da autonomia e da independência, o Código limita a contribuição dos membros investidores para o financiamento da cooperativa. Diz o n.º 1 do artigo 20.º que a soma das entradas dos membros investidores não poderá ser superior a 30% do total das entradas no capital social da cooperativa. Com este limite pretende-se evitar que a cooperativa perca autonomia ao ficar, uma boa parte dos seus recursos próprios, dependente destes membros, cujos interesses não deverão prevalecer na gestão da cooperativa.

Uma vez admitidos, os membros investidores poderão participar, ainda que limitadamente, nas decisões da cooperativa. Em nome do princípio da gestão democrática, o legislador dispõe que estes não poderão representar, em caso algum, mais de 25% do número de elementos efetivos que integram o órgão (de administração ou de fiscalização) para que são eleitos (n.º 8 do art. 29.º do CCoop). Tendo em conta esta limitação, no caso da mesa da assembleia geral, exige-se que haja pelo menos quatro titulares para que possa ser designado um membro investidor (o mínimo legal exigido, por força do n.º 1 do art. 35.º, é de dois, que são o Presidente e o Vice-presidente). No caso do conselho de administração, do conselho fiscal e da comissão de auditoria, exige-se que haja pelo menos cinco titulares para que possa ser designado um membro investidor (o mínimo legal exigido, por força da conjugação dos n.os 1 e 3 do art. 45.º e dos nos 1 e 2 do art. 51.º, e do disposto no n.º 2 do art. 56.º, é de três titulares). Finalmente, no caso de órgão unipessoal (administrador único, fiscal único), não podem ser designados membros investidores.

Da conjugação dos arts. 20.º, n.º 4, al. f), e 29.º, n.º 8 do CCoop resulta a possibilidade de os estatutos da cooperativa restringirem a elegibilidade de membros investidores para os órgãos no todo, excluindo-a, ou em parte, mediante a fixação de requisitos adicionais, exigindo-se sempre a devida fundamentação.

Do n. .º1 do art. 41.º do CCoop. resulta que não há imposição legal de que os estatutos da cooperativa atribuam voto plural a membros investidores. A existência de voto plural está sempre dependente de previsão estatutária e da verificação de um conjunto de requisitos imperativos quanto ao número mínimo de membros cooperadores (20, no mínimo) e quanto ao ramo cooperativo (excluindo-se os ramos de produção operária, artesanato, pescas, consumidores e solidariedade social). Tal significa que, mas cooperativas que não cumpram esses requisitos imperativos, havendo membros investidores, a regra será a de «um membro, um voto». Nos demais casos, o art. 41.º, n.º 5, do CCoop. devolve aos estatutos da cooperativa a fixação das condições e critérios a que está sujeito o voto plural dos membros investidores. Uma vez que os membros investidores não participam na atividade da cooperativa, parece que será lícito, quanto a estes membros da cooperativa, que a participação financeira na cooperativa seja relevante para a determinação do número de votos. Esta solução significa um afastamento relativamente ao princípio da gestão democrática pelos membros. Todavia, também aqui os estatutos devem respeitar os limites legais imperativos fixados pelo Código Cooperativo em matéria de voto plural de membros investidores, a saber:

(i) Em primeiro lugar, o Código Cooperativo fixa imperativamente o número máximo de votos atribuível a cada membro investidor – três, no caso das cooperativas composta até 50 cooperadores e cinco em cooperativas com mais de cinquenta cooperadores (art. 41.º, n.º 3, do CCoop).

(ii) Além deste, o Código Cooperativo impõe um segundo limite ao voto plural de cada membro investidor: «nenhum membro investidor pode ter direitos de voto superiores a 10% do total de votos dos cooperadores» (art. 41.º, n.º 6, do CCoop).

(iii) Em terceiro lugar, o Código Cooperativo limita imperativamente a percentagem global de votos atribuíveis aos membros investidores, calculada por referência ao «total de votos dos cooperadores». Assim, o conjunto dos membros investidores não podem ter direitos de votos superiores a 30% do total de votos dos cooperadores (art. 41.º, n.º 7, do CCoop).

Através destas percentagens máximas fixadas por referência à totalidade dos cooperadores (art. 41.º, n.ºs 6 e 7, do CCoop.), pretende-se, evitar que a cooperativa, em vez de ser controlada pelos cooperadores, venha a ser controlada por sujeitos que não estão vocacionados para participar na atividade cooperativa. Ou seja, pretende-se preservar os princípios da gestão democrática pelos membros e o princípio da autonomia e da independência (Meira &Ramos 2019, 135-170).

Assim, e não obstante esta porta aberta aos membros investidores, os limites imperativos que acabamos de descrever geram evidentes dificuldades à captação de recursos por esta via (Meira 2016, 315-319).

2.3. Dificuldades de concentração de capital

A variabilidade do capital social é uma caraterística essencial da identidade cooperativa, integrando a própria definição de cooperativa (n.º 1 do art. 2.º e n.º 1 do art. 81.º do CCoop). Reconhecendo-se aos cooperadores um verdadeiro direito de demissão, tal como resulta do n.º 1 do art. 24.º do CCoop[6], a consequência será o reembolso da sua entrada de capital. Efetivamente, no n.º 1 do art. 89.º do CCoop dispôs-se que «em caso de reembolso dos títulos de capital, o cooperador que se demitir tem direito ao montante dos títulos de capital realizados segundo o seu valor nominal, no prazo estabelecido pelos estatutos ou, supletivamente, no prazo máximo de um ano».

Sendo o capital social variável, tal significa que poderá aumentar por novas entradas de membros cooperadores e investidores, e reduzir-se por reembolso das entradas aos cooperadores que se demitam, sem necessidade de alteração dos estatutos da cooperativa. A principal consequência desta variabilidade consistirá na diminuição da segurança económica e financeira que o capital social poderia representar perante terceiros credores, podendo dificultar o financiamento externo das cooperativas e, em determinadas situações, conduzi-las a uma situação de subcapitalização (Meira 2009, 112-117).

Tudo isto é agravado pela circunstância de o legislador continuar a permitir que os cooperadores difiram parte das suas entradas em dinheiro para um momento posterior ao da constituição da cooperativa. Efetivamente, a lei estabelece que 10% do capital a realizar em dinheiro deverá ser efetuado aquando da subscrição. Permite-se, contudo, que os estatutos possam exigir uma entrega superior. Admite-se, desta forma, o diferimento da realização das entradas em dinheiro dos membros cooperadores, cujo valor deverá, no entanto, estar integralmente realizado no prazo máximo de cinco anos (n.º 3 do art. 84.º do CCoop). Tal implica que as cooperativas poderão iniciar a sua atividade com muitos créditos sobre os cooperadores, mas sem os meios líquidos que, efetivamente, lhes permitam exercer a sua atividade.

Destas especificidades do regime legal do capital social na cooperativa, resultam dificuldades quanto à acumulação de capital, o que colocará a cooperativa numa situação desfavorável quanto à possibilidade prática de competir a longo prazo com outros tipos de sociedades cujo capital seja fixo.

Assim, na prática, as únicas vias de acumulação de capital assentarão numa maior dotação do fundo de reserva legal ou numa ampliação da sua base social e consequente autofinanciamento.

Ora, quanto à reserva legal, cujo regime analisaremos no ponto seguinte, a doutrina tem também vindo a destacar que a circunstância de esta dotação não ser retribuída e o facto de esta reserva ser irrepartível não geram qualquer incentivo para os cooperadores.

Quanto ao recurso ao autofinanciamento, a doutrina destaca os poucos incentivos para que os cooperadores sejam investidores na sua própria empresa: a retribuição das entradas é escassa, os títulos de capital não gozam de liquidez, são afetados importantes montantes dos excedentes para a dotação das reservas obrigatórias, as quais não são repartíveis; não existe qualquer relação entre uma maior participação no capital e os direitos do cooperador, designadamente, o direito de voto e de participação nos excedentes (Meira 2009, 341-351).

2.4. A irrepartibilidade das reservas

O Código Cooperativo dispõe que todas as reservas obrigatórias (reserva legal, reserva de educação e formação cooperativas e reservas previstas na legislação complementar aplicável aos diversos ramos do setor cooperativo), bem como as reservas constituídas com resultados provenientes de operações com terceiros, serão insuscetíveis de qualquer tipo de repartição entre os membros, sejam cooperadores ou investidores (art. 99.º do CCoop).

Uma das especificidades do regime económico das cooperativas reporta-se à distinção no património da cooperativa entre um património repartível e um património irrepartível. O património repartível será constituído pela parte do património correspondente ao capital social que cada membro trouxe para a cooperativa e, sob certas condições, pela quota-parte que possa corresponder ao membro das reservas livres que a cooperativa eventualmente constituir. O património irrepartível abrangerá os ativos correspondentes à reserva legal e à reserva de educação e formação cooperativas, reservas previstas na legislação complementar aplicável aos diversos ramos do setor cooperativo e reservas constituídas com resultados provenientes de operações com terceiros (Meira 2009, 74-78).

O regime da irrepartibilidade aplica-se, com caráter absoluto, quer durante a vida da cooperativa, quando o cooperador sai da cooperativa, por demissão ou por qualquer outra via (art. 89.º, 2, do CCoop), quer no momento da liquidação do património da cooperativa (art. 114.º do CCoop). Deste modo, uma parte do património cooperativo nunca poderá ser apropriada individualmente, devendo manter o seu carácter cooperativo, mesmo que a cooperativa desapareça, sem que lhe suceda qualquer outra entidade cooperativa nova. Neste sentido, a doutrina fala da existência, na cooperativa, de um património «coletivo» (Vicent Chuliá 1994, 7).

Um dos fundamentos do regime da irrepartibilidade deriva do princípio da distribuição desinteressada, que será abordado com desenvolvimento na anotação ao art. 114.º do CCoop. Adiante-se que subjacente a este princípio está o facto de a cooperativa não ter, a título principal, um fim lucrativo, traduzido na acumulação de capital para depois ser distribuído entre os membros cooperadores ou investidores, mas o de construir um património coletivo que possa beneficiar os atuais e futuros membros da cooperativa e, em caso de dissolução desta, o movimento cooperativo.

Um outro fundamento resulta da necessária observância do Princípio da adesão voluntária e livre (art. 3.º do CCoop). Efetivamente, a eventual distribuição das reservas obrigatórias entre os cooperadores seria incompatível com aquele princípio, o qual só se poderia observar se todos os membros da cooperativa renunciassem a uma parte dos excedentes líquidos do ativo, tendo em conta que estas reservas são constituídas principalmente por uma percentagem dos excedentes. De contrário, os cooperadores que permanecessem na cooperativa até ao momento da liquidação seriam os únicos a beneficiar das reservas obrigatórias constituídas com excedentes gerados por cooperadores que, entretanto, saíram da cooperativa. Mesmo no pressuposto de que nenhum cooperador se tenha demitido da cooperativa até ao momento da liquidação desta, qualquer distribuição destas reservas obrigatórias pelos cooperadores, na ausência de uma contabilidade analítica que evidenciasse o contributo de cada um deles para a formação destas reservas, causaria prejuízos aos cooperadores fundadores relativamente àqueles que ingressaram em momento posterior na cooperativa. Assim, os cooperadores não disporão, no momento em que se demitirem da cooperativa, do direito de reclamar uma quota-parte das reservas obrigatórias (art. 89.º, 2, do CCoop), impedindo-se, ainda, que, chegada a fase da dissolução da cooperativa, seja repartido entre aqueles o ativo líquido da cooperativa correspondente àquelas reservas (art. 114.º, 2 e 3, do CCoop). Neste contexto, o regime da irrepartibilidade permitirá evitar demissões especulativas (LLobregat Hurtado 1990, 376).

Um outro argumento contra a possibilidade de repartição assenta na particular natureza destas reservas (arts. 96.º e 97.º do CCoop) e, sobretudo, no facto de que estas poderão ser integradas, igualmente, por resultados provenientes de operações com terceiros (que o legislador inapropriadamente designa de excedentes). Ora, os resultados positivos provenientes das operações com terceiros são lucros e, por isso, o legislador cooperativo português impediu que estes resultados sejam repartidos entre os cooperadores, quer durante a vida da cooperativa, quer no momento da sua dissolução (arts 99.º, 100.º, n.º 1, e 114.º do CCoop), sendo transferidos integralmente para reservas irrepartíveis. Estamos perante lucros (objetivos); ainda que, ao impedir a sua distribuição pelos cooperadores, não se possa falar de escopo lucrativo, uma vez não há lucro subjetivo.

A manutenção do regime da irrepartibilidade permite, ainda, atenuar os efeitos da variabilidade do capital social e incrementar as garantias face aos credores (Münckner 2015, 157).

2.5. Limites quanto às operações com terceiros

O escopo mutualístico prosseguido pela cooperativa não implica que esta desenvolva atividade exclusivamente com os seus membros, podendo atuar, igualmente, com terceiros, possibilidade que existia já na própria cooperativa de Rochdale.

Estas relações contratuais com terceiros evidenciam, desde logo, a afirmação da sociabilidade reivindicada pela cooperativa: a cooperativa satisfará, antes de mais, os interesses dos seus membros ao trabalho, ao crédito, à casa e, contemporaneamente, transbordará para o exterior, difundindo os seus serviços também a favor daqueles que, apesar de não serem membros da cooperativa, têm as mesmas necessidades que estes últimos, podendo, deste modo, gerar-se novas adesões. Neste sentido, e como como é destacado nos Princípios PECOL, um projeto de iniciativa académica, conhecido como por «Principles of European Cooperative Law», na Secção 1.5. (4) do Capítulo I, as cooperativas que desenvolvam operações com terceiros «devem conceder­lhes a possibilidade de se tornarem membros cooperadores, devendo informá-los dessa possibilidade» (Fajardo et al 2017, 43).

Por outro lado, este perfil não exclusivo da mutualidade permitirá às cooperativas tornarem-se mais competitivas, aumentado a sua capacidade financeira.

Nesta decorrência, o CCoop, no seu art. 2.º, 2, estabeleceu que «as cooperativas, na prossecução dos seus objetivos, poderão realizar operações com terceiros, sem prejuízo de eventuais limites fixados pelas leis próprias de cada ramo».

Consideramos, no entanto, que os estatutos podem proibir a realização de operações com terceiros. Neste sentido, no PECOL, na Secção 1.5. (2) do Capítulo I, dispõe-se que «as cooperativas podem realizar operações com terceiros, salvo disposição em contrário dos seus estatutos» (Fajardo et al 2017, 43).

Nas palavras de Rui Namorado, «Terceiros, de um ponto de vista cooperativo, são todos aqueles que mantenham com uma cooperativa relações que se enquadrem na prossecução do seu objeto principal, como se fossem seus membros embora de facto não o sejam» (Namorado 2005, p. 184).

Tal significa que as atividades com terceiros, de que fala o legislador, se reportarão a atividades do mesmo tipo da atividade cooperativizada desenvolvida com os cooperadores, pelo que as operações com terceiros estão ainda compreendidas no objeto social da cooperativa. Confirmando esta nossa afirmação, no PECOL, na Secção 1.5. (1) do Capítulo I, afirma-se que «As operações com terceiros abrangem a atividade entre cooperativas e membros não-cooperadores (terceiros) para o fornecimento de bens, serviços ou trabalho, do mesmo tipo dos fornecidos aos membros cooperadores» (Fajardo et al 2017, 43).

No ordenamento português admite-se que as operações com terceiros possam ser objeto de limitações na legislação setorial dos diferentes ramos do setor cooperativo. Ora, ainda que previstas expressamente no art. 9.º do Decreto-Lei n.º 523/99, de 10 de dezembro (cooperativas de comercialização), no art. 7.º do Decreto-Lei n.º 313/81, de 19 de novembro (cooperativas culturais), no art. 14.º do Decreto-Lei n.º 502/99, de 19 de novembro (cooperativas de habitação e construção), no art. 6.º do Decreto-Lei n.º 309/81, de 16 de novembro (cooperativas de produção operária), no art. 6.º do Decreto-Lei n.º 323/81, de 4 de dezembro (cooperativas de serviços) e no art. 24.º, n.ºs 2 e 3 do Decreto-Lei n.º 24/91, de 11 de janeiro (cooperativas de crédito agrícola), apenas esta última norma estabelece limites às operações de crédito com não associados (35% do respetivo ativo líquido total, o qual poderá ser elevado para 50%, mediante autorização do Banco de Portugal).

Os resultados positivos provenientes das operações com terceiros são lucros e, por isso, o legislador cooperativo português impediu que estes resultados sejam repartidos entre os cooperadores, quer durante a vida da cooperativa, quer no momento da sua dissolução (arts 100.º, n.º 1, e 114.º do CCoop), sendo transferidos integralmente para reservas irrepartíveis. No caso das cooperativas culturais, de habitação e construção, de produção operária e de serviços, os excedentes anuais gerados por produtores que não sejam membros (terceiros) serão irrepartíveis e reverterão para reservas obrigatórias.

Estamos perante lucros (objetivos); ainda que, por não serem distribuíveis pelos cooperadores, não se possa falar de escopo lucrativo, uma vez não há lucro subjetivo (Abreu 1999, 174-188).

3. Os grupos cooperativos como uma manifestação da intercooperação e integração cooperativas

O fenómeno dos grupos cooperativos assenta no envolvimento das cooperativas em processos de integração e cooperação (Vargas Vasserot 2010, 159-176; Macías Ruano 2018, 305-320; Henrÿ 2018, 824-830).

Estes processos encontram o seu fundamento, desde logo, no art. 61.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, nos termos do qual: «As cooperativas (…) podem agrupar-se em uniões, federações e confederações e em outras formas de organização legalmente previstas». Na mesma linha, o art. 7.º, n.º 1, da Lei de Bases da Economia Social (LBES) dispõe que «As entidades da economia social podem livremente organizar-se e constituir-se em associações, uniões, federações ou confederações que as representem e defendam os seus interesses» (Meira 2013, 41-42).

Finalmente, o Código Cooperativo prevê várias formas de articulação entre cooperativas: as cooperativas multissetoriais (art. 4.º, n.º 2); a constituição de cooperativas de grau superior (arts. 101.º a 108.º); e a associação entre cooperativas e outras pessoas coletivas (art. 8.º).

Todas estas formas de articulação decorrem do princípio cooperativo da intercooperação, que aparece enunciado no art. 3.º do CCoop, nos seguintes termos: «as cooperativas servem os seus membros mais eficazmente e dão mais força ao movimento cooperativo, trabalhando em conjunto, através de estruturas locais, regionais, nacionais e internacionais». Este princípio estabelece um dever de mútua colaboração entre cooperativas, que visa a prossecução dos interesses dos cooperadores e dos interesses das próprias comunidades em que a cooperativa opera, afastando-se uma visão nacionalista da intercooperação, dada a referência expressa a vários planos — local, regional, nacional e internacional (Namorado 1995, 94; Leite 2012, 70-73; Henrÿ 2018, 824-828).

Subjacente a este princípio está, segundo o nosso entendimento, um conceito amplo de intercooperação que abrange quer as relações entre cooperativas quer as relações entre cooperativas e outras pessoas coletivas.

São identificáveis na doutrina três critérios de classificação quanto às formas de intercooperação: um critério que distingue entre a intercooperação formal e a informal; um outro que distingue entre intercooperação horizontal e vertical (Namorado 1995, 95) e um outro que distingue entre intercooperação representativa e intercooperação económica (Alfonso Sánchez 2001, 355; Fici 2014, 105-117; Macías Ruano 2018, 305-310).

A intercooperação informal compreende um conjunto de vínculos contratuais que se traduzem numa colaboração económica ou de outro tipo, mais ou menos regular, sem perda de individualidade própria por parte das cooperativas contratantes.

Por sua vez, a intercooperação formal traduz-se na integração das cooperativas em estruturas de grau superior ou na associação de cooperativas entre si ou com outras pessoas coletivas, da qual pode resultar a criação de uma outra pessoa coletiva de natureza cooperativa ou diversa.

A intercooperação horizontal corresponde à intercooperação entre cooperativas do mesmo ou de diferentes ramos, ou entre cooperativas e outras pessoas coletivas.

A intercooperação vertical, também chamada intercooperação por via da integração, compreende os grupos cooperativos e as cooperativas de segundo grau.

Saliente-se que, nestes casos de intercooperação por via da integração (cooperativas de segundo grau ou de grau superior) ou por via da associação da cooperativa com outras pessoas coletivas, visar-se-á, tal como se refere no art. 3.º do CCoop, aumentar a eficácia no modo como a cooperativa serve os seus membros, pelo que o escopo mutualístico constitui o fundamento último destes processos.

A intercooperação representativa ou sociopolítica assenta na associação de cooperativas com fins e problemas comuns em estruturas de colaboração (uniões, federações e confederações) a fim de lhes dar visibilidade externa e defender os seus interesses nas instituições e fóruns representativos. Por sua vez, a intercooperação económica que, segundo Alfonso Sánchez (2001, 355), designa a mesma realidade que, no âmbito das sociedades comerciais, é conhecida por «concentração», reporta-se a processos de vinculação empresarial, abrangendo uma variedade de modelos, desde as cooperativas de segundo grau, aos grupos cooperativos, consórcios, processos de fusão, entre outros.

4. O grupo cooperativo como um expediente técnico-jurídico da associação de cooperativas com outras pessoas coletivas

4.1. As modalidades de associação

Centrando-nos, agora, nas modalidades de associação, o art. 8.º, n.º 1, do CCoop estabelece que «É permitida a associação entre cooperativas e outras pessoas coletivas desde que essa associação respeite os princípios cooperativos da autonomia e da independência».

A norma permite a associação da cooperativa com pessoas coletivas de natureza cooperativa ou não cooperativa (associações, fundações, sociedades civis, sociedades comerciais, ou outras).

Esta associação pode materializar-se (ou não) através da criação de uma nova pessoa coletiva.

As pessoas jurídicas criadas por associação de cooperativas são cooperativas (de primeiro grau) e não devem ser confundidas com cooperativas de segundo grau. Este entendimento é reforçado pelo art. 8.º, n.º 3, do CCoop, que permite expressamente alargar o regime de votação das cooperativas de nível superior às pessoas coletivas resultantes da associação entre cooperativas.

Esta associação permite às cooperativas a participação em consórcios, associação em participação ou a participação num agrupamento complementar de empresas (Dias 2018a, 58-68).

4.2. Requisitos

A manutenção da autonomia e da independência da cooperativa é uma condição necessária à sua associação com outras pessoas coletivas (art. 8.º, n.º 1, do CCoop).

Esta ideia da autonomia e independência remete para o princípio cooperativo da autonomia e da independência (art. 3.º do CCoop) e visará assegurar que a associação da cooperativa com outras pessoas jurídicas não põe em causa nem a independência da cooperativa nem o controlo democrático pelos seus membros.

De entre as várias finalidades apontadas a este princípio (Rodríguez Musa 2013, 129-155) destacamos as três que consideramos essenciais: a) garantir que as cooperativas são controladas pelos seus membros; b) garantir que as relações das cooperativas com outras organizações privadas ou públicas não conduzem à instrumentalização das primeiras; c) assegurar que a entrada de capitais provenientes de não cooperadores não põe em causa a autonomia e o controlo democrático das cooperativas (Alcalde Silva 2009, 201-291).

No caso específico que nos ocupa, estamos a reportar-nos à autonomia na existência e solvência da cooperativa (que poderia ser comprometida se a cooperativa assumisse responsabilidade ilimitada), e de autonomia na gestão da sua atividade e do seu património.

Na mesma linha do que defendem João Anacoreta Correia e Maria João Dias (2012, 393), discordamos da posição de Rui Namorado (2000, 190) quando afirma que «Parece não ser compatível com o respeito por este princípio [...] a integração das cooperativas em pessoas coletivas privadas, no seio das quais não detenham uma posição maioritária, como será, por exemplo, o caso de uma cooperativa constituir em conjunto com outras entidades uma sociedade comercial, sem garantir a maioria das ações». Esta posição doutrinal impediria, desde logo, a constituição de sociedades comerciais exclusivamente por cooperativas, em que as várias sócias cooperativas não poderão todas elas deter a maioria das participações sociais.

Desta forma, para determinar se a autonomia é ou não afetada pela associação da cooperativa com outras pessoas coletivas, impõe-se uma avaliação casuística.

Neste sentido, importa destacar alguns exemplos de situações fácticas e jurídicas que poderão implicar perda de autonomia, segundo João Anacoreta Correia e Maria João Dias (2012, 394-395), a saber:

i. a assunção de responsabilidade ilimitada pela cooperativa, na sua qualidade de sócia de uma sociedade comercial;

ii. a afetação pela cooperativa de uma parte significativa do seu património para realizar uma entrada numa sociedade comercial que tem um contrato de subordinação com outra sócia;

iii. a deslocação pela cooperativa de atividades instrumentais, mas essenciais para o seu funcionamento para uma sociedade comercial, na qual originariamente tinha a maioria dos votos, mas que perdeu posteriormente, na sequência de um aumento do capital;

iv. a celebração pela cooperativa de um acordo parassocial com outros sócios, nos termos previstos no art. 17.º do CSC, acordo este que afeta o seu direito de voto na sociedade em que a cooperativa participa.

4.3. As cooperativas podem constituir sociedades

A estatuição do n.º 1 do art. 8.º do CCoop permite, então, que as cooperativas possam constituir sociedades, incluindo sociedades comerciais, desde que tal não prejudique a autonomia da cooperativa, tal como já foi destacado.

No regime jurídico societário não encontramos nenhuma restrição à participação de uma cooperativa numa sociedade comercial. De facto, nem o art. 980.º do Código Civil[7], nem o Código das Sociedades Comerciais (CSC) (exceto nos casos em que este diploma exige que o sócio assuma a veste de algum tipo societário, como acontece nas sociedades em relação de grupo, nos termos dos arts. 481.º e seguintes), impedem que a cooperativa aceda à condição de sócio numa sociedade comercial (Correia & Dias 2012, 392-394).

Sendo assim, as cooperativas podem constituir sociedades comerciais associando-se com outras cooperativas para a constituição de uma sociedade comercial, ou constituindo, por si, originariamente, uma sociedade comercial.

4.4. A cooperativa pode criar, sozinha, uma sociedade comercial

Tal como já foi referido, e conforme os dados constantes da terceira edição da Conta Satélite para a Economia Social foram identificadas 56 sociedades comerciais (incluindo sociedades gestoras de participações sociais) cujo capital era integralmente detido por Cooperativas

Estaremos a reportar-nos, desde logo, a sociedades unipessoais por quotas (arts. 270.º-A a 270.º-G, do CSC), criadas originariamente por cooperativas e a situações de unipessoalidade superveniente tolerada (art. 142.º, n.º 1, al. a), do CSC). Esta última situação ocorre quando uma sociedade se constitui com vários sócios, mas por vicissitudes várias vê o número de sócios reduzido à unidade e, consequentemente, assiste-se à concentração das participações na titularidade do sócio restante. Neste caso, teremos uma pretensa transitoriedade da unipessoalidade superveniente, com riscos de uma dissolução diferida[8].

Exclui-se a constituição direta, por cooperativas, de sociedades unipessoais anónimas, pois o legislador societário não permite que uma cooperativa constitua, por si, uma sociedade unipessoal anónima, condicionando esta faculdade às sociedades por quotas, anónimas e em comandita por ações (art. 488.º, n.º 1, em conjunto com o art. 481.º, n.º 1, do CSC).

Neste contexto, parece evidente que quando falamos da possibilidade de uma cooperativa criar, sozinha e diretamente, uma sociedade comercial, estaremos a referir-nos apenas às sociedades unipessoais por quotas (art. 270.º-A e ss. do CSC). Na verdade, o art. 270.º-C, n.º 2 do CSC permite a constituição unilateral de uma sociedade unipessoal por quotas por qualquer pessoa coletiva, desde que não seja uma outra sociedade unipessoal por quotas (Costa 2003, 80).

Nada impede, segundo o nosso entendimento, que a cooperativa constitua uma sociedade unipessoal por quotas. Esta goza de autonomia patrimonial e o sócio único (a cooperativa) goza da limitação de responsabilidade. Na verdade, a sociedade e a cooperativa são duas entidades jurídicas distintas, há uma separação de patrimónios entre a sociedade e o sócio único (a cooperativa). Do ponto de vista fiscal, ambas as entidades têm diferentes regimes fiscais, pelo que não serão aplicáveis à sociedade os benefícios fiscais da cooperativa. Finalmente, o sócio único (a cooperativa) controla a sociedade de responsabilidade limitada, com plena observância pelos princípios da gestão democrática e da autonomia e independência.

4.5. A questão dos grupos cooperativos

Modalidade particular é a dos grupos cooperativos, que constituem o objeto principal do nosso estudo.

Nas palavras de Morillas Jarillo (2018, p.381), o grupo cooperativo pode ser definido como «a integração de cooperativas entre si e/ou com outras entidades, em virtude da qual e sem perda da sua existência jurídica independente se articula uma unidade de decisão entre os integrantes».

Tal como já foi destacado, o Código Cooperativo não dispõe de qualquer regime sobre a questão dos grupos cooperativos. Assim, tendo em conta o disposto no art. 9.º do CCoop, que manda aplicar o Código das Sociedades Comerciais, em tudo o que não está especificamente previsto no Código Cooperativo, na medida em que não se desrespeitem os princípios cooperativos (Frada & Gonçalves 2009, 888-904), devemos refletir sobre as modalidades de coligação compatíveis com os princípios cooperativos, a que as cooperativas portuguesas podem ter acesso.

A lei societária não permite que as cooperativas constituam os chamados grupos societários de direito, ou seja aqueles cuja criação resulta da utilização de um dos instrumentos jurídicos que o Código das Sociedades Comerciais previu taxativamente para esse efeito. No ordenamento português são três esses instrumentos: o domínio total (arts. 488.º e 489.º do CSC)[9]; o contrato de grupo paritário (art. 492.º do CSC)[10] e o contrato de subordinação (art. 493.º do CSC). Este último consiste num «negócio jurídico bilateral pelo qual uma sociedade (dita sociedade subordinada ou dirigida) se vincula a subordinar a respetiva gestão social à direção de uma outra sociedade (dita subordinante ou diretora) (…) graças ao qual a última passa a dispor de um direito de emitir instruções diretas e vinculantes, ainda que prejudiciais, aos órgãos de administração da primeira» (Antunes 2002, 611).

As normas que regulam estes instrumentos jurídicos têm caráter excecional, não sendo possível, por isso, a sua aplicação analógica.

Este carater excecional encontra o seu fundamento em dois desvios ao padrão normativo tradicional: (i) nas relações de grupo, a sociedade dominante (sócia da dominada nas relações de grupo por domínio total; e sócia nas relações de grupo assentes em contrato de subordinação) tem o direito de dar instruções vinculativas à administração da sociedade dominada (art. 503.º do CSC); (ii) como contraponto à permeabilidade existente entre as sociedades agrupadas e os seus patrimónios, permite-se aos credores da sociedade dominada ou subordinada uma proteção suplementar, impondo-se uma responsabilidade pessoal e ilimitada da sociedade dominante (ou diretora) por todas as obrigações da sociedade dominada (ou subordinada). Portanto, em troca do poder de emanar instruções vinculantes, a sociedade dominante responde ilimitadamente pelas obrigações e perdas da sociedade dominada, em benefício dos credores desta (Abreu 2014, 281-288).

Assim, relativamente às cooperativas, quando falamos de grupos, estaremos a falar apenas de grupo societários de facto, ou seja, aqueles em que o poder de direção detido pela sociedade-mãe sobre as suas filhas teve a sua origem não num instrumento jurídico de constituição do grupo, mas em instrumentos jurídicos contratuais ou outras fontes, como participações maioritárias, acordos parassociais, contratos interempresariais, relações económico-fácticas de dependência (Antunes, 2002, 73).

Recorde-se, no entanto, que em qualquer destes casos, estão vedadas à cooperativa as relações de grupo que se traduzam em qualquer forma de «subordinação» da cooperativa aos interesses de outras entidades. De facto, os princípios cooperativos de autonomia e independência e o do controlo democrático pelos membros impedem a cooperativa de ser uma entidade controlada num grupo de sociedades dominado por outra entidade jurídica. Ou seja, estes grupos cooperativos de facto assentam em cooperativas juridicamente independentes, em que o elemento unificador é a direção única e não o controlo (no sentido da existência de uma entidade jurídica dominante e uma ou mais dominadas). O domínio ou controlo significa o poder de uma entidade jurídica determinar concretamente a atuação de uma outra, a dominada. No sistema cooperativo, a situação de controlo ou domínio é claramente incompatível com os princípios cooperativos.

Deste modo, os princípios cooperativos da intercooperação, da autonomia e da independência e da gestão democrática pelos membros ditarão que os grupos cooperativos sejam grupos paritários, grupos de base contratual e de natureza horizontal, em que as entidades participantes são independentes entre si, estando em situação de igualdade na definição das medidas em que se concretiza a direção unitária e comum. As cooperativas e/ou outras entidades que integram o grupo não dependem umas das outras nem de terceiros, mas aceitam submeter-se contratualmente a uma direção comum, consubstanciada numa terceira entidade com poder de direção (Morillas Jarillo 2018, 391-399; Navarro Lérida& Muñoz García 2018, 356-359).

O grupo pode ser homogéneo (constituído apenas por cooperativas) ou heterógeno (constituído por cooperativas e outras entidades). No grupo homogéneo, os membros do grupo são todos eles cooperativas, mas a entidade cabeça do grupo pode não o ser. Nos grupos heterogéneos, os membros do grupo não têm de ser todos eles cooperativas, bem como a entidade cabeça do grupo. Neste último caso, os membros do grupo deverão ser maioritariamente cooperativas.

Diversamente da legislação portuguesa, a legislação cooperativa espanhola, quer a estatal quer a autonómica, regula expressamente o fenómeno dos grupos cooperativos. O regime previso no art. 78.º da Ley 27/1999 de Cooperativas (Lei estatal de cooperativas) assenta no entendimento de que o grupo cooperativo deve ser, por força da observância aos princípios cooperativos, paritário. No entanto, alguma legislação autonómica, com destaque para a andaluza, parece admitir a possibilidade de uma cooperativa integrar um grupo constituído por contrato de subordinação. Efetivamente, o art. 109.º da Ley 14/2011 de Sociedades Cooperativas Andaluzas distingue entre grupos próprios (por subordinação) e los grupos impróprios (por coordenação). O grupo cooperativo próprio é «aquele em que existe uma sociedade cabeça de grupo que exerce facultades ou emite instruções vinculativas para o grupo. Esta sociedade cabeça de grupo poderá ter ou não natureza cooperativa. Caso seja uma sociedade, os membros do grupo terão de ser maioritariamente cooperativas. Por sua vez, o grupo cooperativo impróprio é «aquele em que os seus membros, que terão de ser maioritariamente cooperativas, se articulam num plano de igualdade, funcionando na base de um principio de coordenação». A exigência de que a maioria dos membros seja cooperativas visa assegurar o controlo do grupo por parte destas (Morillas Jarillo 2018,385).

A admissibilidade do grupo cooperativo próprio estaria sempre dependente da observância do princípio da autonomia e independência e do princípio da gestão democrática pelos membros. Afasta-se, por isso, a possibilidade de as cooperativas participarem nestes grupos como entidades «dominadas».

5. Os grupos económicos cooperativos e os riscos de desmutualização

Do que foi dito, damos por assente que a lei não proíbe que as cooperativas, no respeito pelos princípios da autonomia e da independência e da gestão democrática pelos membros, constituam sociedades comerciais ou se associem com outras cooperativas e com entidades de natureza jurídica diferentes, mediante a constituição de grupos económicos.

Nas relações de grupo em que a entidade de cúpula do grupo não é uma cooperativa, mas uma sociedade de capital a quem cabe a direção e coordenação do grupo, poderá questionar-se se esta estrutura é compatível com a natureza mutualista da cooperativa, tendo em conta que a as sociedades prosseguem a título principal um fim lucrativo. Sendo a cooperativa a entidade de cúpula do grupo, constituído por sociedades comerciais, levantava-se a questão da instrumentalidade ou dependência da atividade desenvolvida pelas entidades societárias participantes do grupo relativamente ao fim mutualista prosseguido pela cooperativa (Navarro Lérida& Muñoz García 2018, 358-359). Neste último caso, a cooperativa desenvolve uma parte da sua atividade não diretamente com os seus membros, no contexto da cooperativa, mas, indiretamente, através de sociedades comerciais controladas e/ou participadas pela própria cooperativa.

Fala a este propósito de um conceito da «mutualidade indireta» ou «mutualidade mediata» (Navarro Lérida & Muñoz García 2018, 358). Este conceito aparece consagrado em alguma legislação de outros ordenamento jurídicos. Neste sentido, aponte-se o art. L.124.1 do Código Comercial Francês, na versão alterada de 2001(Hiez 2013, 409-410) , a Lei finlandesa de 2002, na qual o intercâmbio de atividade entre o sócio cooperador e uma sociedade controlada (pelo menos em 51%) pela cooperativa é considerada, expressamente, como «mutualista», na condição de que a cooperativa detenha o controlo da sociedade (Henry 2013, 373-392) e a Lei norueguesa, com as alterações de 2007, a qual estabelece, no art. 1.º, parágrafo terceiro, do Cooperative Act, 29 June 2007, n. 81, uma definição de mutualidade indireta, dispondo que «A cooperative society also exists if the interests of the members […] are promoted through the members’ trade with an enterprise, which the cooperative society owns alone or togheter with other cooperative societies, including a secondary cooperative […]»(Fjortoft & Gjems-Onstad 2013, 567).

Este conceito também está presente nos «Princípios PECOL», na Secção 1.1. (3) do Capítulo I, admitindo-se que «a empresa cooperativa possa incluir empresas detidas pela cooperativa através de uma filial, se tal for necessário para a satisfação das necessidades dos seus membros e desde que estes detenham o controlo dessa filial» (Fajardo et al., 2017, 19).

Tais sociedades comerciais funcionariam como um instrumento que visa possibilitar a realização do escopo mutualístico da cooperativa.

Não esqueçamos que as cooperativas têm um escopo mutualístico, uma vez que visam, a título principal, a satisfação das necessidades dos seus membros, enquanto consumidores, fornecedores ou trabalhadores da empresa cooperativa sendo este escopo que as distingue de outras entidades. O que verdadeiramente identifica a cooperativa é a própria ausência de um escopo autónomo que se diferencie dos interesses dos cooperadores. Na decorrência do escopo mutualístico da cooperativa, os cooperadores assumem a obrigação de participar na atividade da cooperativa, cooperando mutuamente e entreajudando-se em obediência aos princípios cooperativos (al. c) do n.º 2 do art. 22.º do CCoop) (Fici 2018, 135-137). Tal significa que as cooperativas operam com os seus membros, no âmbito de uma atividade que a eles se dirige e na qual estes participam cooperando, atividade que que designamos de atividade cooperativizada (Vargas Vasserot 2006, 67).

Sendo assim, parece-nos que o conceito de «mutualidade indireta» é compatível com o escopo mutualístico, mas, se admitido sem limites ou condições, traz consigo evidentes riscos de desmutualização das cooperativas, pelo que, na matéria que nos ocupa, se impõe sempre uma análise casuística.

Se, no contexto de um grupo económico, a atividade da cooperativa tiver sido transferida para uma ou mais sociedades comerciais sem quaisquer limites, podemos estar perante uma transformação encapotada da cooperativa em sociedade comercial, com a consequente violação do art. 111.º do CCoop, que proíbe a transformação da cooperativa numa sociedade comercial (Dias 2018b, 584-589; Alfonso Sanchéz 2018, 499-516).

Com efeito, o art. 111.º do CCoop dispõe que «É nula a transformação de uma cooperativa em qualquer tipo de sociedade comercial, sendo também feridos de nulidade os atos que contrariem ou iludam esta proibição legal».

Essa transformação proibida é uma transformação heterogênea, uma vez que a entidade jurídica transformada não é originalmente uma sociedade comercial (Lanz 2010, 244). Além disso, a transformação proibida inclui a transformação cooperativa formal e a transformação extintiva, na qual a pessoa jurídica original é dissolvida e substituída por outra que lhe suceda. O legislador também proíbe a «transformação dissimulada», que compreende todo tipo de atos que permitem às cooperativas o acesso ao regime das sociedades comerciais (Dias 2018b, 587-589).

Diversamente, será lícita a constituição de uma sociedade comercial por uma cooperativa ou em associação com outras cooperativas e/ou outras entidades, provando-se que a sociedade comercial foi constituída para o desenvolvimento de atividades instrumentais, preparatórias ou complementares da atividade económica desenvolvida entre a cooperativa e os seus membros, mantendo a cooperativa a atividade principal que esteve na base da sua criação. A cooperativa segmenta as atividades que integram o seu objeto social, entregando uma ou mais dessas atividades a uma ou mais sociedades comerciais por si controladas.

Os riscos de desmutualização a existirem poderão fundamentar uma ação de responsabilidade civil contra os membros dos órgãos de administração e de fiscalização (arts 71.º e 76.º do CCoop) e, em último caso, dar causa a um procedimento administrativo de dissolução das cooperativas, promovido pela Cooperativa António Sérgio para a Economia Social (CASES), enquanto fiscalizador externo das cooperativas em Portugal, com base na não coincidência da atividade cooperativa com o objeto expresso nos estatutos (n.º 2 do art. 118.º do CCoop).

6. A essencialidade de um regime de determinação e distribuição de resultados que assegure a identidade cooperativa

Uma das mais importantes —e mais controversas— questões que se colocam a propósito dos grupos cooperativos prende-se com a determinação dos resultados.

Admitindo a possibilidade de que a cooperativa possa desenvolver o seu escopo mutualístico indiretamente, através de uma sociedade por si controlada ou em que detém participações sociais conjuntamente com outras cooperativas, levanta-se o problema da classificação dos resultados provenientes dessa atividade económica. Será que os poderemos classificar como excedentes cooperativos?

O excedente cooperativo é o termo utilizado na doutrina e na legislação para designar os resultados económicos positivos que decorrem da prossecução do escopo mutualístico pela cooperativa, correspondendo à diferença entre as receitas e os custos da atividade cooperativizada com os membros. Trata-se de um valor provisoriamente pago a mais pelos cooperadores à cooperativa ou pago a menos pela cooperativa aos cooperadores, como contrapartida da participação destes na atividade da cooperativa (Meira 2012b, 358-360).

Tendo em conta esta definição, parece, à primeira vista, que qualificar tais resultados como excedentes implicaria, desde logo, a negação da personalidade jurídica da sociedade comercial participada. A cooperativa e a sociedade comercial são duas entidades jurídicas distintas, com separação de patrimónios e com finalidades distintas.

Uma solução possível seria a de defender que os resultados provenientes destas operações desenvolvidas pelas sociedades controladas ou participadas por cooperativas deveriam ficar sujeitos ao regime previsto no Código Cooperativo para as operações com terceiros.

Tal como já foi por nós referido, as atividades com terceiros, de que fala o legislador no n.º 2 do art. 2.º do CCoop, reportam-se a atividades do mesmo tipo da atividade desenvolvida com os cooperadores, pelo que as operações com terceiros estão ainda compreendidas no objeto social da cooperativa, sendo que os resultados delas provenientes porque são considerados lucros, não podem ser repartidos entre os cooperadores, quer durante a vida da cooperativa, quer no momento da sua dissolução (arts 100.º, n.º 1, e 114.º do CCoop), sendo transferidos integralmente para reservas irrepartíveis.

No entanto, temos algumas reservas quanto à plena adequação desta solução. A dúvida persiste quanto aos resultados provenientes de operações que a cooperativa desenvolve indiretamente por sociedades comerciais por si detidas ou participadas conjuntamente com outras cooperativas e que se reportam a atividades situadas dentro do objeto social da cooperativa, que, ainda que sejam atividades instrumentais ou complementares, se revelam essenciais para a prossecução do escopo mutualístico. Hoje, parece-nos que a emergência destes grupos e a sua relevância em termos económicos imporá a necessidade de revisitar o regime de determinação e distribuição destes resultados na cooperativa e, eventualmente, discutir-se a possibilidade de, limitadamente, repartir uma parte destes resultados pelos cooperadores, aplicando analogicamente o regime previsto para o retorno cooperativo.

Quanto às atividades situadas fora do objeto social da cooperativa, estaremos inequivocamente perante lucros (por exemplo, quando tais participações correspondem a meros investimentos feitos pela cooperativa).

Em todo o caso, o que é certo é que a existência de grupos cooperativos gera uma diversidade de resultados económicos, pelo que a cooperativa terá de adotar uma contabilidade separada que permita distinguir claramente os excedentes — resultantes das operações com os cooperadores — dos lucros — provenientes das operações com terceiros ou das operações extraordinárias. Esta contabilidade separada permitirá que a cooperativa contabilize, sem perigo de confusão, o património repartível e o irrepartível (Fajardo 1997, 125; Bandeira, Meira & Alves 2017, 37-63).

Ora, nem o Código Cooperativo nem a legislação contabilística aplicável às cooperativas em Portugal (Sistema de Normalização ContabilísticaSNC)[11] se pronunciaram sobre esta questão, pelo que continua a ser possível, no estado atual da legislação, a não adoção de uma contabilização separada das operações com membros, com terceiros e operações extraordinárias, com as consequentes dificuldades em termos de controlo e fiscalização quanto à proveniência, distribuição e afetação dos resultados económicos das cooperativas.

7. Conclusões

O fenómeno dos grupos cooperativos tem na sua génese razões económicas, financeiras e até jurídicas.

Trata-se de um fenómeno que assenta no envolvimento das cooperativas em processos de integração e cooperação, apresentando-se, por isso, como uma manifestação do princípio da intercooperação, na sua dimensão de colaboração económica.

O regime jurídico que enquadra as estratégias de grupo adotadas pelas cooperativas em Portugal é insuficiente.

À luz do regime previsto no Código Cooperativo, as cooperativas podem constituir sociedades comerciais, filiais societárias, adquirir participações no capital social de sociedades comerciais, desde que tal não prejudique a autonomia da cooperativa e o controlo democrático pelos membros.

O Código Cooperativo não se pronuncia sobre a questão dos grupos cooperativos. Por força da remissão do art. 9.º do CCoop, estes grupos poderão ser apenas grupo societários de facto.

Os princípios cooperativos da autonomia e da independência e da gestão democrática pelos membros determinam que os grupos cooperativos sejam grupos paritários, grupos de base contratual e de natureza horizontal, em que as entidades participantes são independentes entre si, estando em situação de igualdade na definição das medidas em que se concretiza a direção unitária e comum.

Nas relações de grupo em que a entidade de cúpula do grupo não é uma cooperativa, mas uma sociedade de capital a quem cabe a direção e coordenação do grupo, poderá questionar-se se esta estrutura é compatível com a natureza mutualista da cooperativa, tendo em conta que as sociedades prosseguem a título principal um fim lucrativo. Sendo a cooperativa a entidade de cúpula do grupo, constituído por sociedades comerciais, levantava-se a questão da instrumentalidade ou dependência da atividade desenvolvida pelas entidades societárias participantes do grupo relativamente ao fim mutualista prosseguido pela cooperativa

A doutrina e certos ordenamentos jurídicos reconhecem, expressamente, o conceito de «mutualidade indireta», ou seja, a possibilidade de a cooperativa prosseguir o seu escopo mutualístico não diretamente com os seus membros, mas, indiretamente, através de sociedades comerciais controladas ou participadas pela própria cooperativa.

Este conceito, que não está previsto expressamente na legislação portuguesa, não é isento de riscos, podendo conduzir a situações de desmutualização da cooperativa, quando esta transfere para a sociedade comercial a sua atividade, podendo configurar uma transformação dissimulada da cooperativa em sociedade comercial, o que é proibido pelo Código Cooperativo português.

Quanto à classificação dos resultados provenientes da atividade económica desenvolvida pela sociedade controlada pela cooperativa ou em que esta detém participações sociais, não temos quaisquer dúvidas em classificar como lucros os resultados provenientes das atividades situadas fora do objeto social da cooperativa, que ficarão sujeitos ao regime previsto no Código Cooperativo para os resultados provenientes das operações com terceiros, sendo obrigatoriamente afetados a reservas irrepartíveis.

Quanto aos resultados provenientes de operações que a cooperativa desenvolve indiretamente através de sociedades comerciais por si detidas ou participadas, que se reportam a atividades situadas dentro do objeto social da cooperativa, as quais se revelam necessárias para a prossecução do escopo mutualístico, poderão levantar-se dúvidas quanto à sua classificação e regime de distribuição. O conceito de excedente parece revelar-se inadequado para enquadrar estes resultados, mas impõe-se uma reflexão quanto à possibilidade de os mesmos serem, pelo menos parcialmente, repartidos pelos cooperadores.

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[1] Doutora em Direito. Professora Coordenadora de Direito Mercantil no Politécnico do Porto/ISCAP. Correio eletrónico:meira@iscap.ipp.pt. ORCID iD: 0000-0002-2301-4881

[2] Projeto desenvolvido pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), em parceria com a CASES (Cooperativa António Sérgio para a Economia Social), na decorrência de um protocolo de colaboração celebrado entre ambos.

[3] https://cases.pt/wp-content/uploads/2019/07/19ContaSatEconSocial_2016.pdf.

[4] Lei n.º 119/2015, de 31 de agosto, com as alterações constantes da Lei n.º 66/2017, de 9 de agosto.

[5] V., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29 de setembro de 2005, Processo n.º 2062/2005-8. O texto completo pode ser consultado em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/3f6edd41f484c9c1802570c3003a06a5?OpenDocument&Highlight=0,associa%C3%A7%C3%A3o,de,cooperativas.

[6] O n.º 1 do art. 24.º do CCoop estabelece que «os cooperadores podem solicitar a sua demissão nas condições estabelecidas nos estatutos ou, no caso de estes serem omissos, no fim de um exercício social, com pré-aviso de 30 dias, sem prejuízo da responsabilidade pelo cumprimento das suas obrigações como membros da cooperativa».

[7] Esta norma dispõe que «Contrato de sociedade é aquele em que duas ou mais pessoas se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício em comum de certa atividade económica, que não seja de mera fruição, a fim de repartirem os lucros resultantes dessa atividade».

[8] O art. 142.º, n.º 1, do CSC, estabelece que a dissolução pode ser administrativamente requerida: «a) Quando, por período superior a um ano, o número de sócios for inferior ao mínimo exigido por lei, exceto se um dos sócios restantes for o Estado ou entidade a ele equiparada por lei para esse efeito».

[9] Nos termos do art. 488.º do CSC, o domínio total inicial ou originário assenta na titularidade exclusiva de uma sociedade anónima por uma sócia única que poderá assumir a forma de sociedade anónima (unipessoal ou plural), de sociedade por quotas (unipessoal ou plural) ou uma sociedade em comandita por ações. A sócia única será o sujeito ativo da relação de domínio e a sociedade anónima constituída o sujeito passivo da relação de domínio.

[10] Situação grupal de base contratual, em que sociedades, independentes entre si, se subordinam a uma direção unitária e comum.

[11] Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de julho [que aprovou o SNC], alterado pelo Decreto-Lei n.º 86/2015, de 11 de março.

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