Boletín de la Asociación Internacional de Derecho Cooperativo

International Association of Cooperative Law Journal

ISSN: 1134-993X • ISSN-e: 2386-4893

DOI: https://doi.org/10.18543/baidc

No. 61/2022

DOI: https://doi.org/10.18543/baidc612022

ARTÍCULOS

Primeiras reflexões sobre a difusão dos princípios orientadores da ONU para empresas e direitos humanos pela Aliança Cooperativa Internacional

(First reflections on the dissemination of the UN guiding principles for business and human rights for the International Cooperative Alliance)

Leonardo Rafael de Souza[1]
Danielle Anne Pamplona[2]

Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR (Brasil)

DOI: https://doi.org/10.18543/baidc.2455

Recibido: 25.05.2022
Aceptado: 28.10.2022
Fecha de publicación en línea: diciembre de 2022

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Sumario: 1. Introdução. 2. Os princípios orientadores da ONU para empresas e direitos humanos e a responsabilidade das empresas de respeitar os direitos humanos. 3. As cooperativas e seu foco no ser humano. premissa ratificada pela declaração sobre a identidade cooperativa da ACI. 4. Aproximação dos princípios orientadores à identidade cooperativa e a sua necessária difusão pela ACI como meio de atendimento ao sétimo princípio cooperativo. 5. Considerações finais. 6. Referências

Summary: 1. Introduction. 2. The UN Guiding Principles on Business and Human Rights and the Responsibility of Business to Respect Human Rights. 3. Cooperatives and their focus on human beings. premise ratified by the statement on the ICA’s cooperative identity. 4. Approximation of guiding principles to cooperative identity and their necessary dissemination by the ICA as a means of meeting the seventh cooperative principle. 5. Final considerations. 6. References

Resumo: Em meio à globalização, do acirramento da concorrência empresarial, da transnacionalização da produção e da multiplicação de impactos negativos de atividades empresariais em direitos humanos, é aprovado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU o texto dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos (POs). Ao propor uma atuação empresarial alinhada com os documentos internacionais de proteção aos direitos humanos e com a Declaração Tripartite de Princípios sobre Empresas Multinacionais e Política Social da OIT, os POs em muito se aproximam dos fundamentos histórico, ético e doutrinário do movimento cooperativo global organizados pela Aliança Cooperativa Internacional (ACI), especialmente do seu documento base: a Declaração Sobre a Identidade Cooperativa. A partir da análise destes dois documentos encampados por Resoluções das Nações Unidas, o presente artigo apresenta as primeiras reflexões teóricas sobre como as cooperativas e sua preocupação com a comunidade podem promover a difusão dos direitos humanos na atividade empresarial. Em conclusão, o alinhamento teórico das premissas comunitárias dos POs e da Declaração sobre a Identidade Cooperativa parece ampliar a possibilidade de interpretação da ACI sobre a concepção de desenvolvimento sustentável a partir de uma lógica humanista, o que fundamenta a sua integração às premissas doutrinárias do cooperativismo.

Palavras-chave: Empresas; Direitos Humanos; Cooperativas; Desenvolvimento Sustentável.

Abstract: In the face of globalization, increased business competition, transnationalization of production and the multiplication of negative impacts of business activities on human rights, the text of the Guiding Principles on Business and Human Rights (GPs) was approved by the UN Human Rights Council. By proposing business performance in line with international documents for the protection of human rights and with the ILO’s Tripartite Declaration of Principles on Multinational Enterprises and Social Policy, the GPs are very close to the historical, ethical and doctrinal foundations of the global cooperative movement organized by International Cooperative Alliance (ICA), especially its base document: Statement on Cooperative Identity. Based on the analysis of these two documents covered by United Nations Resolutions, this article presents the first theoretical reflections on how cooperatives and their concern for the community can promote the diffusion of human rights in business activities. In conclusion, the theoretical alignment of the GPs and the Statement on Cooperative Identity seems to expand the ICA’s interpretation of the concept of sustainable development based on a humanist logic, which underlies its integration with the doctrinal premises of the cooperativism.

Keywords: Business; Human Rights; Co-operatives; Sustainable Development.

 

1. Introdução

O avanço da globalização e as consequentes desigualdades econômicas e sociais ao redor de mundo trouxeram às nações, também por meio da Organização das Nações Unidas (ONU), a necessária discussão sobre o equilíbrio entre desenvolvimento econômico e a proteção dos direitos humanos. Ou seja, por meio de uma noção de desenvolvimento sustentável passou a se refletir também sobre a possibilidade de o desenvolvimento econômico garantir e proteger a dignidade da pessoa humana, princípio expresso desde a Carta das Nações Unidas.

Neste contexto, as empresas enquanto expressão fundamental do desenvolvimento econômico passaram a ser observadas como peças essenciais dessa discussão, afinal, é também por meio das atividades empresariais que a macro e a microeconomia movimentam globalmente as nações e seus povos, abrindo possibilidades para que elas contribuam positivamente para avanços sociais. Muitas vezes, contudo, estas atividades encontram ambientes regulatórios e institucionais férteis para que ocorram violações dos direitos humanos. É o que geralmente ocorre em países mais pobres ou com baixa vontade política para exercer sua capacidade de bem regular e/ou fiscalizar a ação dessas empresas-frequentemente transnacionais e com interesses distintos dos países onde estão desenvolvendo suas atividades.

Após algumas tentativas fracassadas de regulamentar a atividade das transnacionais[3] a ONU, por seu Secretário Geral, em 2005, cria uma representação especial para analisar a questão das empresas e os direitos humanos, nomeando para o cargo o então Professor de Direitos Humanos e Relações Internacionais da Universidade de Harvard, John Ruggie. Após seis anos de trabalho, Ruggie apresentou os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos[4], os quais foram adotados ainda em 2011 pelo Conselho de Direitos Humanos.

Trata-se de 31 princípios organizados em três distintos pilares com propósitos específicos: Proteger, Respeitar e Reparar. Na interpretação e aplicação destes pilares é atribuída aos Estados a obrigação de proteger os direitos humanos, sendo responsabilidade das empresas respeitar estes mesmos direitos, tudo sob a necessidade de se garantir meios adequados de reparação em caso de descumprimento desses deveres. A disseminação e a identificação dos desafios e boas práticas para a implementação dos Princípios, ficaram sob a responsabilidade do então criado Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Direitos Humanos e Corporações Transnacionais e outras Empresas.

A adoção dos Princípios não se deu indene de críticas, especialmente por seu caráter voluntário. A partir de então, muito se discute sobre a possibilidade de que mudanças reais ocorram sem a exigência legal de comportamentos por parte das empresas. A discussão foge do tema deste texto, sendo suficiente mencionar que foi criado, em 2014, um Grupo Aberto Intergovernamental sobre Corporações Transnacionais e Direitos Humanos que, desde então, tem discutido o texto do que se pretende, no futuro, seja um tratado internacional sobre o tema. Os trabalhos de ambos os grupos são relevantes, a disseminação e aplicação dos Princípios e sua capacidade de alcançar resultados que reflitam na diminuição de impactos negativos de atividades empresariais é limitada, assim, fundamental já pensar em um texto vinculante.

De modo algum é suficiente que esse tema fique restrito somente à atuação estatal, ao contrário, é fundamental a difusão dos Princípios também entre as empresas, como forma de fomentar a sua implementação voluntária em nome da manutenção da vida e do meio ambiente, e do desenvolvimento sustentável do seu próprio negócio.

Nessa linha, uma das formas de difundir globalmente os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos sobre a atividade econômica global é a sua aproximação ao movimento cooperativo, organizado globalmente pela Aliança Cooperativa Internacional (ACI). Embora as sociedades cooperativas sejam empreendimentos econômico-sociais distintos e eminentemente regionais (embora haja cooperativas transnacionais), sua estruturação societária é única por contar com um código de valores acordado em nível internacional e reconhecido pela própria ONU (Resolução 56/114/UN, de 19/12/2001), valores estes que desde a sua origem histórica consideram o homem como o fim da atividade econômica exercida.

Sendo assim, o objetivo do presente estudo é propor e justificar a aproximação dos Princípios Orientadores ao movimento cooperativo a partir da demonstração da sua relação com a Declaração Sobre a Identidade Cooperativa da Aliança Cooperativa Internacional, documento este que expressa globalmente o conceito, os valores e os princípios cooperativos aplicáveis em todo o mundo. Para tanto, por meio do método indutivo e a partir de fontes bibliográficas e documentais, o texto inicia apresentando os Princípios Orientadores —com reflexão específica sobre o seu segundo pilar, que se dedica a demonstrar que as empresas têm responsabilidade de respeitar os direitos humanos—, justificando a sua aplicabilidade também às sociedades cooperativas em todo o mundo. Na sequência, por meio da análise da Declaração Sobre a Identidade Cooperativa, o estudo apresenta as premissas identitárias das sociedades cooperativas que justificam a sua lógica aderência aos Princípios —em especial o 7.º Princípio Cooperativo da Preocupação com a Comunidade—, defendendo ao final como a Aliança Cooperativa Internacional pode contribuir para a difusão global da proteção dos direitos humanos na atividade empresarial cooperativa.

Em suma, o que este artigo propõe é demonstrar que a aproximação axio-principiológica dos Princípios Orientadores com a Declaração Sobre a Identidade Cooperativa da ACI, ambas reconhecidas à luz do Direito Internacional pela ONU, poderá contribuir para a difusão da proteção dos direitos humanos na atividade empresarial para os quase 1 bilhão de membros e clientes de cooperativas em todo mundo.

2. Os princípios orientadores da onu para empresas e direitos humanos e a responsabilidade das empresas de respeitar os direitos humanos

Como visto, os Princípios Orientadores, expressam a legítima tentativa de promover a adoção de um enfoque regulatório em torno das atividades empresariais que, por vezes, repercutem sobre os direitos humanos (Cantú Rivera 2018). A evolução do direito internacional dos direitos humanos nas últimas décadas se orientou no sentido de melhor refletir sobre como responsabilizar empresas que, por vezes, cometem transgressões à dignidade humana, especialmente quando estas responsabilidades podem também ser internacionais à luz dos mecanismos de direito internacional (Thompson 2017, 164).

O direito internacional ainda não reconhece as empresas como sujeitos de direitos e obrigações, mas o enfoque descritivo e orientativo dos Princípios Orientadores deixa claro ser obrigação das empresas contribuir com o dever de proteção dos Estados e respeitar os direitos humanos; e de reparar qualquer dano aos direitos humanos por força de suas atividades (Thompson 2017, 170; Cantú Rivera 2018, 30-31). Mas, afinal, como foram criados e como estão estruturados estes princípios?

A discussão sobre as possibilidades de responsabilização de empresas por impactos negativos de suas atividades reacendeu nos anos 2000 após o fracasso na adoção, no final da década de 1990, da discussão proposta pela ONU sobre o que se convencionou chamar de Normas de Responsabilidades de Corporações Transnacionais e Outras Empresas em Relação aos Direitos Humanos (Ruggie 2014, 19). A polarização entre ativistas e empresas, somado às críticas doutrinárias quanto ao caráter vinculativo das obrigações às empresas quando os sujeitos de direito internacional são os Estados, esvaziaram as discussões, porém sem apagar o seu necessário enfrentamento (Ruggie 2014, 20):

Enfrentando crescentes campanhas e processos de ativistas, o próprio setor empresarial percebeu a necessidade de maior clareza no que se referia a suas responsabilidades pelos direitos humanos, mas era preciso que as orientações viessem de uma fonte razoavelmente objetiva e confiável. Os governos também perceberam, no entanto, que um processo intergovernamental provavelmente não conseguiria obter muitos progressos em um assunto tão novo, complexo e com tamanha carga política, sem antes encontrar um terreno sobre o qual pudesse seguir adiante.

Cantú Rivera (2018, 27-28) acrescenta que foi para equilibrar esses interesses que a Comissão de Direitos Humanos da ONU (CDH/ONU) decidiu por indicar John Ruggie enquanto especialista externo com o objetivo inicial de bem compreender o alcance das Normas inicialmente propostas e, assim, clarificar a extensão da responsabilidade das empresas no âmbito dos direitos humanos. Ao ser nomeado como Representante Especial do Secretário Geral para a questão dos direitos humanos e empresas transnacionais, o primeiro mandato de Ruggie (2005-2008) foi marcado pelo desenvolvimento de um marco conceitual capaz de bem determinar as obrigações tanto dos Estados quanto das empresas.

O quadro referencial «Proteger, Respeitar e Remediar» contém três pilares fundamentais, quais sejam:

1. o dever do Estado de proteger contra abusos cometidos contra os direitos humanos por terceiros, incluindo empresas, por meio de políticas, regulamentação e julgamento apropriados; 2. a responsabilidade independente das empresas de respeitar os direitos humanos, o que significa realizar processos de auditoria (due diligence) para evitar a violação de direitos de outros e abordar os impactos negativos com os quais as empresas estão envolvidas; 3. a necessidade de maior acesso das vítimas à reparação efetiva, por meio de ações judiciais e extrajudiciais.

John Ruggie toma o cuidado em situar a discussão sobre empresas e direitos humanos a partir de um corpo normativo internacional já existente, evitando assim impor obrigações às empresas sem uma reflexão prévia sobre as práticas e desafios anteriormente postos. Assim, explica Cantú Rivera (2016, 42-43), a partir de casos reais de afronta aos direitos humanos por empresas buscou refletir sobre a sua responsabilização, observando modelos internacionais de responsabilidade e prestação de contas aplicáveis às corporações e que indicassem a prevenção e o combate à violação dos direitos humanos por meio de políticas e práticas gerenciais que reconhecessem as prerrogativas humanas e criassem mecanismos de avaliação de impacto aos direitos humanos pela sua respectiva atividade.

Londoño-Lazaro, Thoene e Pereira-Villa (2017, 444) destacam que diante da completa receptividade do Conselho de Direitos Humanos da ONU ao trabalho desenvolvido por Ruggie, um segundo mandato (2008-2011) lhe foi garantido com o objetivo de desenvolver as condições pelas quais o quadro referencial «Proteger, Respeitar e Remediar» pudesse ganhar contornos práticos para a sua implementação e operatividade (Cantú Rivera 2018, 28). Assim, ao finalizar o seu mandato e apresentar o seu informe final ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em março de 2011 (Documento A/HCR/17/31), John Ruggie deu publicidade aos Princípíos Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos, um documento organizado em 31 princípios com recomendações para a implementação da proteção e respeito dos direitos humanos pelos Estados e pelas empresas. Tais princípios foram adotados na íntegra pelo Conselho no dia 16 de junho de 2011, na Resolução 17/4 (Naciones Unidas 2011).

Os Princípios, além de não estabelecerem novas obrigações de direito internacional —foco da tensão histórica sobre o tema—, devem ser interpretados como forma de melhorar a conduta empresarial no respeito aos direitos humanos, além de serem aplicados «a todos los Estados y a todas las empresas, tanto transnacionales como de otro tipo, con independencia de su tamaño, sector, ubicación, propietarios y estructura» (Naciones Unidas 2011, 1).

Em outros termos, embora reconheça que estes princípios não constituem um documento juridicamente vinculante do ponto de vista internacional, seu conteúdo ético-dissuasório (pois transformado em Resolução pela CDH/ONU) trata de exortar o respeito aos direitos humanos e a responsabilização da atividade empresarial por meio da atuação protetiva dos Estados, garantido ainda meios de reparação quando da não observância dessas premissas pelas empresas. Por este motivo, pondera Cantú Rivera, é que o pilar principiológico dedicado à responsabilidade das empresas se mostrou de profunda relevância (Cantú Rivera 2016, 44). Neste pilar há quatorze princípios (11 ao 24) centrados na responsabilidade das empresas de respeitar os direitos humanos.

Aqui, fundamental esclarecer e alertar que o recorte metodológico proposto a partir do objetivo geral do presente estudo não pretende esmiuçar cada um desses princípios, mas tão somente destacar dos princípios fundamentais presentes no segundo pilar, os aspectos axio-principiológicos que permitam, nestas primeiras reflexões, justificar a aproximação dos Princípios Orientadores com as premissas identitárias do movimento cooperativo, de conteúdo igualmente ético-dissuasório, organizado em torno da Aliança Cooperativa Internacional.

Para o Princípio 11, a responsabilidade de respeitar os direitos humanos e enfrentar eventuais impactos negativos pela sua violação deve ser compreendido como um dever de conduta moral de toda empresa independentemente da atuação do Estado, o que significa dizer que a defesa da dignidade humana deve ser uma premissa da atividade empresarial onde quer que ela ocorra. Esses direitos humanos, diz o Princípio 12, têm como referência aqueles internacionalmente reconhecidos a partir dos direitos enunciados na Carta Internacional de Direitos Humanos e da Declaração da Organização Internacional do Trabalho sobre os direitos fundamentais no trabalho (Naciones Unidas 2011, 15-17).

Ademais, o Princípio 13 pondera que a responsabilidade das empresas de respeitar os direitos humanos exige uma postura preventiva tanto a partir das suas próprias atividades, enfrentando as consequências de eventual violação, quanto por suas relações comerciais diretamente relacionadas com operações, produtos ou serviços prestados por terceiros, contribuindo assim não apenas com a prevenção, mas também com a mitigação dos impactos negativos mesmo quando não tenham contribuído para gerá-los. Também por isso, então, que o Princípio 14 garante a abrangência dessa responsabilidade a todas as empresas independentemente do seu tamanho, estrutura, propriedade (Naciones Unidas 2011, 17-18). Esta, aliás, é a premissa que permite considerar a aplicabilidade desses princípios às sociedades cooperativas.

Por fim, o Princípio 15 estabelece ser fundamental que estas condutas morais estejam alicerçadas em políticas e procedimentos que considerem o tamanho e as circunstâncias das suas atividades empresariais. Na prática, as empresas devem assumir um compromisso político público, difundido e estruturado que garanta um processo de devida diligência também em matéria de direitos humanos. Então, tornam-se possíveis não apenas a identificação, a prevenção e a prestação de contas em matéria de direitos humanos, mas também e principalmente a mitigação e a reparação de impactos negativos sobre os direitos humanos que a atividade empresarial eventualmente venha a provocar ou contribuir (Naciones Unidas 2011, 18).

Isso significa dizer que as empresas devem desenvolver uma política empresarial de direitos humanos adotada no mais alto nível gerencial, estabelecendo para tanto, processos de devida diligência e mapeamento de riscos em direitos humanos, garantindo procedimentos adequados para remediar qualquer impacto negativo da atividade à dignidade humana. Isso traduz um novo enfoque da atividade empresarial que ultrapassa a busca pelo resultado meramente econômico para alcançar também obrigações que garantam o direito de terceiros, como são os direitos humanos (Cantú Rivera 2016, 45).

Todavia, este modelo empresarial distinto, que ultrapassa a lógica do lucro, já existe e está teoricamente alicerçado em torno das sociedades cooperativas.

3. As cooperativas e seu foco no ser humano. Premissa ratificada pela declaração sobre a identidade cooperativa da ACI

Ao refletir sobre o conceito de direitos humanos, Ruggie (2014, 31) assevera que «[a] simplicidade e o poder dos direitos humanos vêm da ideia de que todas as pessoas são dotadas de dignidade inerentee de direitos iguais e inalienáveis.» No âmbito do direito internacional, acrescenta, a formação da Carta Internacional dos Direitos Humanos considera dois pactos que abrangem tanto direitos civis e políticos como a vida, liberdade e segurança, por exemplo, quanto os direitos econômicos, sociais e culturais, os quais consideram o direito de condições justas ao trabalho, direito de associação, padrões adequados de vida etc. (Ruggie 2014, 32).

Já ao fundamentar o seu pragmatismo empresarial baseado em princípios, Ruggie (2014, 46) evoca a necessidade de as corporações repensarem a sua conduta empresarial no sentido de estabelecer um compromisso moral de promoção e proteção dos direitos humanos, ou seja, promover mudanças na vida diária das pessoas a partir das prerrogativas citadas acima. Em outras palavras, os Princípios Orientadores propõem uma nova forma das empresas —insertas num ambiente capitalista e cada vez mais globalizado e concorrido— focarem a sua atuação também no ser humano, utilizando para tanto os mesmos mecanismos de governança, devida diligência e mapeamento de riscos utilizados para o fim maior de toda atividade empresarial: o lucro. Percebe-se aqui o quanto os Princípios também são um instrumento capitalista, todavia, e sem fugir dessa lógica, permitem o fomento de condutas que tenham impacto positivo para as pessoas, na mesma medida que permitem o fomento de condutas que buscam impedir a ocorrência de impactos negativos, ou remediá-los.

Para Almeida de Moraes e Pamplona (2019, 11), a expansão da globalização econômica e o aprofundamento das necessidades capitalistas transformaram os eixos de poder das empresas, trazendo como consequência a ampliação das desigualdades sociais e dos danos ambientais, problemas que, segundo Cantú Rivera (2018, 32), precisam ser mitigados para recolocar o homem (e o meio ambiente) entre uma das preocupações das empresas.

Todavia, a necessidade de repensar a atividade econômica e empresarial em prol do que hoje se convenciona chamar de desenvolvimento sustentável não é exatamente nova: o surgimento das sociedades cooperativas há quase 200 anos é fruto de uma mesma demanda por solidariedade e altruísmo hoje evocada pelos Princípios Orientadores. Embora em época distinta, o surgimento do movimento cooperativo está fundado em problemas de desigualdade e desrespeito à dignidade humana semelhantes, como destaca Schneider (2012, 254):

As cooperativas surgem como uma reação emancipadora e uma resistência do mundo operário e camponês à grave situação de exploração durante a primeira fase da Revolução Industrial, quando o liberalismo de então era contrário a qualquer forma de associação profissional, que visasse à defesa dos interesses de classe (Lei Chapellier, na França, em 1791). O capitalismo industrial verificou êxitos econômicos espetaculares, progressos técnicos sempre renovados, um aumento vertiginoso da produção/produtividade, uma grande flexibilidade e abertura às inovações tecnológicas, uma capacidade para a abertura e expansão dos mercados, bem como um enorme aumento de bens e serviços materiais em benefício do homem. Contudo, o balanço negativo de tal sistema não foi menos espetacular, ao destruir a antiga estrutura econômica e social artesanal e da pequena produção e desapropriar os artesãos e trabalhadores de seus instrumentos de produção, mergulhando-os numa terrível miséria, exploração e dominação.

O que o movimento cooperativo propôs em sua época foi um modelo de negócio que valorizasse o humano nas relações negociais e comerciais em face de um momento de semelhante transformação econômica e social que não apenas impingiu aos trabalhadores das fábricas baixos salários, desumanas condições de trabalho e até mesmo altas taxas de desemprego, mas também levaram à sociedade ao crescente endividamento, à interferência de intermediários inescrupulosos nos negócios, aos preços elevados e aos produtos adulterados (Kaplan de Drimer y Drimer 1981, 225).

É a partir desse contexto de exploração e degradação humana, e com fundamentos teóricos em doutrinas de fraternidade e justiça social, refletidos por socialistas utópicos como Robert Owen, Charles Fourier e Conde de Saint-Simon, os quais acreditavam na razão e na possibilidade da vontade humana de atuar reformando a evolução econômica em busca de uma sociedade mais equitativa e justa, que 28 tecelões de Rochdale, cidade próximo à Manchester, Inglaterra, começam em 1843 a debater uma forma de transformar a realidade do seu entorno (Miranda 2012, 74).

Num misto de teoria, prática e um forte conteúdo moral, esses tecelões após diversas reuniões decidem por organizar, com escassos recursos próprios, um armazém cooperativo regulado por normas estabelecidas por eles mesmos. O objetivo inicial era simplesmente prover aos sócios mercadorias (essencialmente alimentos) de boa qualidade a preços justos. Do resultado dessas vendas uma parte seria necessariamente destinada a objetivos coletivos e sociais decididos pelos sócios para, depois, ser distribuída entre os membros na proporção do consumo de cada qual. Surgia a Rochdale Equitable Pioneers Society (Miranda 2012, 74).

Para Schneider (2012) e Miranda (2012), a sociedade dos Pioneiros de Rochdale marca o que se convencionou chamar de cooperativismo moderno ante o fato dos mesmos codificarem em seus Estatutos Sociais, de forma clara e objetiva, os métodos essenciais do agir cooperativo para a superação das dificuldades econômico-sociais existentes, incluindo nesses documentos uma fusão de doutrina e prática baseada em valores e métodos muito bem definidos —e propagando-os com êxito. Por isso é que De Souza (2017, 35) admite ser correta a conclusão de Paul Lambert em atribuir ao pensamento Rochdaleano a síntese original dos valores e princípios cooperativos, os quais serviram como impulso a outras iniciativas cooperativas que culminaram, inclusive, com a fundação da Aliança Cooperativa Internacional, em 1895.

Neste sentido, como bem fundamenta Martínez Charterina (1995, 35-36), a fundação da Aliança Cooperativa Internacional (ACI) e a sua consolidação como entidade máxima do cooperativismo no mundo é fruto de uma história em busca de identidade que diferenciasse o negócio cooperativo de outras realidades sociais e empresariais ao longo dos séculos XIX e XX. Desde a sua criação e a realização de seus congressos globais, o objetivo da ACI em todo o mundo é manter a tradição cooperativa herdada da experiência de Rochdale por meio da organização, defesa e difusão dos valores e princípios cooperativos extraídos de uma ação prática global centrada no homem.

Esta ação prática hoje defendida pela ACI significa, para a doutrina seminal de Georges Lasserre (2008, 77-78), exercer a cooperação como alternativa à atividade empresarial de forma a negar o individualismo e a simples maximização dos ganhos. Na essência teórica do cooperativismo está a construção do homem cooperativo, ou seja, aquele que se fundamenta sobre os valores da dignidade humana, autoajuda, honra do trabalho, solidariedade e justiça distributiva. Ademais, acrescenta, essa mudança de paradigma proposto pelo cooperativismo é fundamental inclusive para o sucesso econômico dos negócios, afinal, a solução cooperativa —ao contrário da concorrência— «solo alcanzará su plena medida si una cantidad suficiente de hombres del sector cooperativo alcanza la calidad humana necesaria.» (Lassere 2008, 78).

3.1. A Declaração Sobre a Identidade Cooperativa da ACI

Criada para promover, definir e defender os princípios cooperativos em todo mundo, como dito, a ACI atualmente é reconhecida como uma das três Organizações Não Governamentais com status consultivo perante a ONU (De Conto 2015). Para De Souza (2017, 47), muito desse reconhecimento vem da própria construção altruísta dos princípios cooperativos, os quais foram fortalecidos essencialmente na Europa ante a resistência das cooperativas durante a segunda guerra mundial e o seu papel fundamental na reconstrução do continente, fatos que levaram os líderes cooperativistas a perceberem que a atuação cooperativa extrapolava a simples relação societária/empresarial existente entre os membros.

No curso do século XX, a preservação dos valores e princípios cooperativos pela ACI se deu pela aproximação dos seus congressos globais com a academia (Martínez Charterina 1995, 37; Schneider 2012, 258). Após estabelecer os princípios cooperativos a partir dos fundamentos morais de Rochdale, as mudanças econômico-sociais das décadas de 1970 e 1980 levaram o movimento cooperativo a revisitá-los, identificando ainda os valores que fundamentam a prática cooperativa. Em 1995, após aproximadamente 12 anos de pesquisas coordenadas em todo o mundo, a ACI apresentou durante o Congresso de comemoração do seu centenário, em Manchester, o que até hoje é tido como o documento base do movimento cooperativo global: a Declaração Sobre a Identidade Cooperativa.

Acompanhada de um informe complementar, onde a ACI explica e aprofunda os seus termos, a Declaração Sobre a Identidade Cooperativa está dividida em três partes que fundamentam a compreensão do agir cooperativo. Na primeira parte a declaração se preocupa com uma definição global de cooperativa[5], centrando-a na devida atenção às necessidades não apenas econômicas, mas também sociais e culturais dos seus membros. Já na segunda parte a Declaração se destina à sistematização dos valores, os quais são apresentados e divididos em valores atribuíveis à empresa cooperativa[6] e aos seus membros[7], estes chamados de valores éticos a partir da tradição dos fundadores de Rochdale (De Souza 2017, 49-50).

Não obstante os fundamentos éticos que se espera dos membros, cabe destacar, diante dos objetivos do presente estudo, a preocupação da ACI com a identificação dos valores relativos à empresa cooperativa, ou seja, os fundamentos éticos-dissuasórios que orientam o agir empresarial da atividade cooperativa em todo o mundo. Ao tratar sobre os valores cooperativos da autoajuda e solidariedade por exemplo, a ACI acredita que o desenvolvimento sustentável apenas é possível através de uma ação conjunta que busque o desenvolvimento de todos, rompendo com o individualismo e a competição para realçar a noção de ajuda mútua. Na prática cooperativa, o agir empresarial parte da visão de que o interesse geral é o que prevalece.

Para dar contornos objetivos a estes valores, instrumentalizando-os, é que a Declaração Sobre a Identidade Cooperativa, em sua terceira parte, identifica os princípios cooperativos[8]. Por vezes alterados e reinterpretados a partir dos valores cooperativos (que são imutáveis) frente às realidades sociais, estes princípios são as diretrizes do comportamento cooperativo, pautando as rotinas de seus membros e de sua atividade econômica e social (Schneider 2012, 259-269).

Importante destacar que embora não redigida pela ONU, como os Princípios Orientadores, Henrÿ (2012, 1) assevera que a Declaração Sobre a Identidade Cooperativa é reconhecida pela entidade como a expressão da importância distintiva das sociedades cooperativas para o desenvolvimento econômico e social em todo o mundo. Prova disso é a absorção do conceito, valores e princípios cooperativos tanto pelas Resoluções n.° 56/114 (de 18 de janeiro de 2002) e n.° 64/136 (de 10 de fevereiro de 2010) da ONU, quanto pela Recomendação n.° 193 (de 20 de junho de 2002) da OIT. Em todos estes documentos, pondera o autor, está alicerçada a ideia de que a empresa cooperativa é fundamental para o mundo dos negócios do futuro, afinal, o pensamento cooperativo possui compromissos principiológicos com a comunidade onde está inserta (Henri 2012, 55), visão igualmente fundante para os Princípios Orientadores.

4. Aproximação dos princípios orientadores à identidade cooperativa e a sua necessária difusão pela ACI como meio de atendimento ao sétimo princípio cooperativo

Como visto, a essência dos Princípios Orientadores em relação a atuação empresarial está no dever de conduta moral de toda empresa a responsabilidade de respeitar os direitos humanos e enfrentar eventuais impactos negativos pela sua violação (Princípio 11), direitos humanos estes compreendidos como aqueles insertos tanto na Carta Internacional de Direitos Humanos quanto na Declaração da OIT sobre os direitos fundamentais no trabalho (Princípio 12). Nestas condições, direitos fundamentais como o direito ao trabalho e à remuneração equitativa e satisfatória, o direito à vida em comunidade e o direito de poder exigir a satisfação de direitos econômicos, sociais e culturais se transformam em indispensáveis linhas de atuação de toda e qualquer atividade empresarial, à luz do disposto no Princípio 14.

No comentário ao Princípio 12, por exemplo, o documento recepcionado pelas Nações Unidas pondera que ao recepcionar a Carta Internacional de Direitos Humanos, a atuação das empresas no seu dever de respeitar os direitos humanos deve considerar essencialmente a vida em comunidade (Naciones Unidas 2011, 16). Ademais, ao fundamentar a extensão das obrigações das empresas quanto ao respeito aos direitos humanos, o Princípio 13 dos Princípios Orientadores é igualmente claro em direcionar uma visão altruísta à atuação empresarial na medida em que estabelece que a responsabilidade da empresa não está apenas vinculada à sua própria atuação, mas também nas relações com os seus sócios (na cooperativa, os seus cooperados), entidades de sua cadeia de valor ou com qualquer outra entidade relacionada às suas operações (Naciones Unidas 2011, 17).

Ao aproximar essas perspectivas comunitárias dos Princípios Ruggie em busca de um equilibrado desenvolvimento econômico e social aos fundamentos axio-principiológicos da Declaração Sobre a Identidade Cooperativa da ACI, percebe-se que a conexão entre estes documentos está na interpretação do sétimo princípio cooperativo: o interesse pela comunidade. Segundo este princípio, a preocupação comunitária está na essência do agir cooperativo em busca do desenvolvimento sustentável das suas comunidades. Para a Aliança Cooperativa Internacional (2012, 91) o sétimo princípio operacionaliza valores cooperativos fundamentais como a autoajuda, a solidariedade e a preocupação pelos demais.

Tanto é verdade que ao publicar, em 2015, uma atualização doutrinária sobre a interpretação dos princípios cooperativos, a ACI preocupou-se em justificar que o interesse das cooperativas pela comunidade se dá pelo fato desse modelo societário surgir e estar, em regra, arraigado às comunidades nas quais desenvolve as suas atividades. E neste ponto, ainda que existam cooperativas transnacionais, a estrutura de êxito do negócio cooperativo, desde Rochdale, está na sua capacidade de ajudar as comunidades a se desenvolverem de forma sustentável. Isso é da essência dos valores cooperativos, diz a ACI (2015, 91-92):

Los valores éticos presentes en la Declaración sobre la Identidad Cooperativa de la Alianza proceden de las relaciones especiales que las cooperativas mantienen con sus comunidades, que van más allá de una mera relación económica y comercial. Las cooperativas están abiertas a miembros de las comunidades en las que trabajan y tienen el compromiso de asistir a las personas en esas comunidades para que consigan ayudarse a sí mismas, en todos los aspectos de la vida. Las cooperativas son instituciones colectivas que existen en una o más comunidades. Han heredado tradiciones que se preocupan por la salud y el bienestar de las personas en sus comunidades. Por lo tanto, tienen la responsabilidad de esforzarse por ser éticos y socialmente responsables en todas sus actividades. El contenido de este 7o principio, en concreto que «las cooperativas trabajan en favor del desarrollo sostenible de sus comunidades» sitúa el mayor énfasis en la preocupación por el desarrollo sostenible de sus comunidades locales inmediatas dentro de las que operan las cooperativas. Insta a todas las cooperativas a demostrar que es posible lograr sus objetivos y ser una empresa sostenible que beneficie tanto a sus miembros como a las comunidades dentro de las que realizan su actividad.

A faceta central da atenção da ACI quanto a preocupação das cooperativas com a comunidade é a mesma que Cantú Rivera (2018, 38) pondera sobre Empresas e Direitos Humanos: o desenvolvimento sustentável. Ademais, o fato de as sociedades cooperativas serem essencialmente regionais não retira do movimento cooperativo a sua preocupação global, pelo contrário. Como bem assume a ACI (2015, 92), da sua atuação mais imediata e organizada floresceram inquietudes a nível nacional, regional e global.

Neste contexto global, o próprio movimento cooperativo reconhece que o sétimo princípio nasceu das mesmas preocupações doutrinárias percebidas das leituras de John Ruggie, qual seja, o debate internacional proposto pela ONU ao longo da década de 1990 sobre os objetivos do desenvolvimento sustentável, iniciados com o Informe Brundtland. Para a ACI (2015, 93), este principio se fundamenta «en la preocupación del movimiento cooperativo y el compromiso de trabajar para conseguir un desarrollo sostenible social, económico y medioambiental que beneficie a las comunidades y a los miembros de las cooperativas.»

Mas não é apenas em seus fundamentos éticos que os Princípios Orientadores e a Declaração Sobre a Identidade Cooperativa se aproximam em busca da defesa dos direitos humanos. Também um espírito prático organiza ambos os documentos encampados pela ONU. Prova disso é que ao final do seu sétimo princípio cooperativo a ACI estabelece que este trabalho pelo desenvolvimento sustentável se dá «através de políticas aprovadas pelos membros.»

Este parece ser o vínculo prático a ser assumido pela ACI na defesa dos Princípios Orientadores junto ao movimento cooperativo, afinal, o Princípio Orientador 15 estabelece que as empresas devem assumir um compromisso político público, difundido e estruturado que garanta um processo de devida diligência também em matéria de direitos humanos. Nas sociedades cooperativas, portanto, a absorção dos Princípios Orientadores depende apenas e tão somente da sua difusão e absorção pelos cooperativistas, os quais em seus estatutos cooperativos podem livremente admitir o seu dever (histórico e axio-principiológico) de identificar, prevenir, mitigar e prestar contas sobre os direitos humanos que essencialmente defende.

Aliás, a própria justificação dessa aproximação está estabelecida na Nota de Orientação dos Princípios Cooperativos da ACI (2015, 94) quando esta reflete que o estabelecimento de políticas que tenham impacto positivo no desenvolvimento sustentável das comunidades depende da reflexão destas nas assembleias gerais das cooperativas, vinculando seus colaboradores e gestores às políticas voltadas à proteção e difusão dos direitos humanos em suas atividades econômicas.

Assim, os Princípios Orientadores parecem ampliar a capacidade de interpretação da ACI sobre a concepção de desenvolvimento sustentável a partir de uma lógica humanista, permitindo na interpretação do seu sétimo princípio cooperativo a defesa dos direitos humanos nas comunidades globalmente atingidas por um movimento cooperativo organizado e historicamente estabelecido para o homem enquanto centro da sua atividade econômica.

5. Considerações finais

Como refletido neste artigo, os Princípios Orientadores e a Declaração Sobre a Identidade Cooperativa da Aliança Cooperativa Internacional, notadamente em relação à preocupação do movimento cooperativo global com as comunidades atendidas pelo agir cooperativo, possuem semelhantes premissas e fundamentos humanistas à luz do direito internacional que permitem uma atuação conjugada destes documentos na proteção e difusão dos direitos humanos no âmbito das atividades empresariais.

Ainda que a atual discussão sobre Empresas e Direitos Humanos esteja centrada na elaboração de um instrumento internacional juridicamente vinculativo para regular, à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos, as atividades das empresas transnacionais e outras empresas comerciais, é inafastável o dever da sua doutrina em difundir as premissas teóricas e pragmáticas dos Princípios Orientadores aos diversos ambientes empresariais. Isso porque, como assevera o próprio comentário ao Princípio 11, a responsabilidade de respeitar os direitos humanos hoje constitui uma norma de conduta moral das empresas, a qual independe da existência de tratados, planos de ações ou atuações estatais, especialmente quando programas de conformidade e boas práticas de governança hoje em desenvolvimento já orientam uma atuação empresarial racionalmente mais ampla e altruísta, ou seja, consciente também da sua função social. Por isso estas primeiras reflexões.

As sociedades cooperativas, não obstante eventuais críticas, ainda são um modelo empresarial privado distinto por centrar a sua atuação não no capital, mas nos indivíduos e suas comunidades. Outrossim, por estarem organizadas globalmente em torno de um documento de conteúdo ético-dissuasório reconhecido pelo Direito Internacional Público, as cooperativas possuem fundamentos axio-principiológicos que tornam mais palatáveis a absorção dos Princípios Orientadores às atividades empresariais, facilitando a sua difusão caso encampadas pelas interpretações doutrinárias sistematicamente realizadas pela ACI.

Dessa forma, ao cumprir o seu objetivo de fundamentar a aproximação dos Princípios Orientadores ao movimento cooperativo, estas primeiras reflexões exortam por um intercâmbio doutrinário que estabeleça diretrizes estratégicas de atuação da ACI em defesa dos Direitos Humanos na atividade empresarial. A linha de ação, como visto, parece estar na compreensão de que as cooperativas em todo mundo possuem na sua essência uma visão comunitária em busca do desenvolvimento sustentável, podendo os Princípios Orientadores dar contornos práticos ao agir cooperativo de forma a garantir em suas estruturas de governança também o alinhamento aos fundamentos humanistas apresentados pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos.

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[1] Doutorando em Direito no Programa de Pós-graduação em Direito (PPGD) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Bolsista CNPq/MAI-DAI. Email: leonardo.rafael@pucpr.edu.br.

[2] Pós-doutora pelo Washington College of Law, American University, Washington, DC (2015-2016). Visiting Scholar no Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law, Heidelberg (2019). Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Coordenadora da Clínica de Direitos Humanos do PPGD/PUCPR. Vice-diretora da Academia Latino-americana de Empresas e Direitos Humanos. Email: danielle.pamplona@pucpr.br.

[3] Neste sentido e especificamente sobre o tema, De Schutter (2016, 41-67) destaca que a tentativa de regulamentação das empresas transnacionais não é recente, sendo interpretada inclusive como uma tentativa de reestabelecer discussões iniciadas já na década de 1970 e em 2003. Todavia, pondera, essas tentativas anteriores de regulamentação falharam justamente porque se acreditou impor às sociedades as normas de direito internacional dirigidas aos Estados, erro este não repetido nos Princípios Ruggie. Para maiores reflexões sobre o tema, ver: De Schutter, Olivier. 2016. «Towards a new treaty on business and human rights.» Business and Human Rights Journal, v. 1, n.º 1: p. 41-67.

[4] No original: Guiding Principles on Business and Human Rights: Implementing the United Nations Protect, Respect and Remedy Framework.

[5] Definição de Cooperativa segundo a declaração: «Uma cooperativa é uma associação autônoma de pessoas que se unem, voluntariamente, para satisfazer aspirações e necessidades económicas, sociais e culturais comuns, através de uma empresa de propriedade comum e democraticamente gerida.»

[6] Os valores relativos às empresas cooperativas: «As cooperativas baseiam-se em valores de ajuda e responsabilidade próprias, democracia, igualdade, equidade e solidariedade.»

[7] Os valores éticos relativos aos membros: «Na tradição dos seus fundadores, os membros das cooperativas acreditam nos valores éticos da honestidade, transparência, responsabilidade social e preocupação pelos outros.»

[8] Os sete princípios do movimento cooperativo são: 1.º PRINCÍPIO: ADESÃO VOLUNTÁRIA E LIVRE; 2.º PRINCÍPIO: GESTÃO DEMOCRÁTICA PELOS MEMBROS; 3.º PRINCÍPIO: PARTICIPAÇÃO ECONÓMICA DOS MEMBROS; 4.º PRINCÍPIO: AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA; 5.º PRINCÍPIO: EDUCAÇÃO, FORMAÇÃO E INFORMAÇÃO; 6.º PRINCÍPIO: INTERCOOPERAÇÃO; 7.º PRINCÍPIO: INTERESSE PELA COMUNIDADE. Suas definições estão disponibilizadas na página da Aliança Cooperativa Internacional na internet (https://www.ica.coop/es/cooperativas/identidad-alianza-cooperativa-internacional).

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